AURORA – ARTHUR SCHNITZLER
A novela inicia com uma justificativa nobre para conseguir dinheiro no jogo. Um amigo em necessidade e a expectativa de conseguir multiplicar os parcos florins. Representação de nossas falências e ilusões. Quem sabe o jogo possa resgatar a dignidade dos fraudadores... Na mesa de jogo, os personagens se confundem. O Cônsul do Equador, representante de um país que nunca visitou e não pretende visitar, parece isca fácil. Já perdeu grandes somas em ocasiões anteriores e não se importou. O jovem ator Elrief e os oficiais compõem a mesa junto com o primeiro-tenente Wilhem. Cada um marcado por um traço em sua personalidade ressaltado no intervalo entre as cartas, todos despersonalizados por um baralho indiferente. Somos contagiados pela dança do carteado, torcemos pelo protagonista. Ele começa jogando pequenas quantias e perdendo... Mas a sorte muda. Wilhem ganha várias partidas, perde a cautela com que iniciou no jogo e o dinheiro se multiplica em suas mãos. Ele tenta parar, mas as circunstâncias o levam novamente para a mesa de jogo no Café. Ele perdeu o último trem para Viena e parece razoável continuar apostando. Afinal a sorte está ao seu lado e os milhares de florins em suas mãos não eram esperados. O que tem a perder? O jogador perde a noção dos valores, perde a quantia que ganhou, perde onze milhares de florins emprestados pelo Cônsul... Na febre do jogo, o homem perde a percepção de suas limitações e fica encarcerado numa dívida absurda, superior a quatro anos de remuneração, que deverá ser paga em vinte quatro horas. No caminho de volta a Viena, Wilhem se desespera, tenta em vão conseguir um prazo maior para honrar sua dívida, mas o Cônsul é indiferente aos seus argumentos e permanece firme no que fora acordado na mesa de jogo. Saldar uma dívida de jogo é uma questão de honra. Aurora. O dia inicia sem que o protagonista consiga sentir a luz de um novo amanhecer, está preso às suas pulsões. Sempre fora resistente aos vícios, mas sucumbiu diante da pseudo-sorte que refletiu num espelho mágico. Wilhem passa o dia torturado com a possibilidade de não conseguir o dinheiro e de perder o cargo de oficial. Na mesa de carteado, sem se dar conta, apostou sua identidade e o seu papel no mundo tal qual o amigo civil, ex-oficial afastado por dívidas de jogo, que pediu o dinheiro emprestado e desencadeou tudo... O inferno iluminado pelas boas intenções. O único ato diante da perda da honra é anunciado a todo instante nos gritos do pensamento do protagonista, mas ainda surpreende no final teatral do desespero humano. A morte é a solução para algumas vidas à deriva... O que restou do protagonista? Um corpo flácido de cadáver desonrado, uma dívida não saldada e a degradação silenciada por um ato extremo. Arthur Schnitzler, médico e escritor austríaco, contemporâneo de Freud, elaborou na ficção o que o fundador da psicanálise estudava na ciência. Escreveu grandes novelas sobre as paixões e os vícios, retirando as máscaras que disfarçam as perversões e os limites dos homens na sociedade. É autor da novela Breve romance de sonho, narrativa ambígua e onírica que desvela o erotismo e a morte, usado por Stantey Kubrick na realização do filme De olhos bem fechados. Artur Schnitzler rasga o tênue véu que separa a nudez do homem de sua representação no mundo e penetra nas feridas perpetradas pela hipocrisia da sociedade e pela fragmentação dos indivíduos.
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 04/01/2006
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