NÁUFRAGOS NO ASFALTO DERRETIDO
Madrugada. Os passos suspensos são interrompidos pelo olhar infantil à espreita. Barbarella ainda está acordada! Ela corre em minha direção assustada. Manhê! Aconteceu algo terrível!” Breves instantes e meus pensamentos são dominados pelas maiores catástrofes. Ela continua a narrativa. Estava quase dormindo quando ouviu um barulho assustador na rua. Foi à janela e pode ver o corpo de um motoqueiro estendido no asfalto após ter sido lançado da moto e atropelado no cruzamento. Juntou uma pequena multidão, até o porteiro do prédio se aproximou... “Muito sangue! Muito sangue!” Seu coraçãozinho está disparado. Com o final da narrativa, compreendo que, aos nove anos, Barbarella está pela primeira vez diante da morte e atordoada com a vulnerabilidade de repentinamente ser lançada e já não perceber... Sento em sua cabeceira para acalentar o seu sono. Demora a dormir, mas o discreto sorriso infantil volta a ornar sua face adormecida. Há possibilidade de sonhos... Desperta, apóio no parapeito e fico à sombra de uma noite de poucas estrelas. A rua está deserta, mas há um tom rubro no asfalto. Sangue entranhado no calçamento e acentuado pela luz pública.... Ou será que também estou impressionada? Pego uma revista e leio a entrevista com a menina de treze anos, sem identidade ou qualquer referência, que participou ativamente do incêndio no ônibus do Rio de Janeiro com cinco mortos. Uma menina que aos sete anos mendigava nas ruas por comida e que aos treze já consegue tarefas de confiança na boca de fumo onde trabalha. A frieza do seu relato impressiona. A morte não assusta. Seu arrependimento é formal, apenas uma conseqüência de sua captura. As labaredas não causarão as sombras do remorso em sua consciência, nem iluminarão a dor ou a culpa. A menina é completamente indiferente aos sobreviventes e aos mortos, náufragos de um asfalto derretido, sufocados por uma realidade absurda e perversa. A leitura é cortada pela presença silenciosa de Barbarella à beira da cama. Seus olhos estão arregalados suspensos por um pesadelo quase consciente. Ela fala em tom choroso enquanto deita encolhida no meu lado. “Manhê! Você acha que ele morreu? E eu nem pude fazer nada...”
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 09/12/2005
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