Colcha de Retalhos

"O homem é um deus quando sonha e não passa de um mendigo quando pensa." Holderlin

Textos

BLASFÊMIA OU DEVOÇÃO

Deus sempre foi uma grande inspiração para personagens, mas nunca imaginei encontrá-lo no banco dos réus ou identificado numa ação litigiosa. O julgador absoluto do supremo tribunal é despojado de sua divindade e exposto em um processo comum, distribuído como qualquer outro e submetido ao intrincado mundo processual. O autor da audaciosa ação, um preso romeno identificado apenas pelo primeiro nome, Pavel, é um precursor em absurdos jurídicos ou um gênio ousado que lançará à reflexão os direitos e deveres de Deus e das Igrejas perante os devotos.

A acusação - difundida pela imprensa virtual no mundo inteiro - sustenta que, ao ser batizado, Pavel firmou com Deus um contrato que o manteria longe do diabo e que a sua própria situação de preso (condenado?) já mostraria que ele foi tentado pelos demônios, prova cabal do inadimplemento do contrato por Deus. O processo, em curso na Corte de Timisoara, provavelmente será arquivado pela impossibilidade de se intimar Deus. Novamente o absurdo se confunde com a realidade: se é tão certa a existência do Criador, não é um privilégio poupá-lo das graves acusações só pela dificuldade de encontrá-lo? Quais poderes terão sido outorgados aos procuradores? E os tribunais Eclesiásticos? Poderiam arquivar o processo sem julgamento do mérito com um despacho atestando a impossibilidade de localização do Réu?

A burocracia processual pode impedir a compreensão do sublime. O reconhecimento de um direito pode alterar radicalmente os valores da justiça...

Pode ser que Pavel seja apenas um homem devoto, que acredita piamente na religião que alicerçou seus primeiros anos, reafirmada em outros rituais litúrgicos, e caiu em tentação. Se comprovada sua sinceridade, estaria a salvo de uma reversão no mundo processual e de responder a um processo por litigância de má-fé. Contudo, Pavel já está, liminarmente, condenado a sufocar o sentimento de impunidade dos poderosos.

Pacta sunt servanda (os contratos devem ser cumpridos) é um princípio clássico da teoria dos contratos. No caso do batismo, as cláusulas que constituem o pacto são comuns ao contrato de adesão firmado por todos os que aderem a uma determinada religião. Assim, a procedência da ação, proposta por Pavel, criaria um precedente jurídico perigoso que tornaria o Réu e as Igrejas procuradoras vulneráveis às inúmeras ações de indenização ingressadas pelos que houvessem se deparado com os próprios demônios e sucumbido às tentações.

Fico com algumas indagações reverberando. Na impossibilidade de intimar pessoalmente o Réu, não seria necessária a intimação por edital ou a decretação da revelia? E os tantos procuradores? Não seria o caso de foro privilegiado? Como arrolar testemunhas? Não estariam constrangidas pela simples condição de criaturas? Não somos todos filhos de Deus? Quem analisaria a competência ou suspeição dos tribunais? A redenção e o paraíso não seriam formas de indenização pré-pactuadas?

Não basta o direito, é necessário o processo. Talvez o grande dramaturgo romeno, criador do teatro do absurdo, Eugène Ionesco, pudesse quebrar a imobilidade do mundo processual e possibilitar os julgamentos individuais na arte, mas, por enquanto, a ousada ação de Pavel limita-se à informação veiculada na página Terra Notícias (Quentinhas - 17/10) e propagada em outros veículos de comunicação como uma blasfêmia ou absurdo.

Rebus sic stantibus (estando assim as coisas) é uma cláusula atenuante da regra pacta sunt servanda e que, ligada à teoria da imprevisão, seria um excelente argumento para defesa de Deus, afinal os personagens que se destacam no mundo atual, tão fragmentado e paradoxalmente globalizado, adotam a postura do próprio criador e falam em seu nome sem qualquer constrangimento. Outros, condenados pelas manipuladas opiniões públicas e pelos julgamentos teatrais, são expostos como demônios e condenados ao inferno dos territórios devastados pelo terrorismo e pela miséria.

Longe dos templos religiosos, Deus permanece como uma metáfora, utilizada nas entrelinhas como justificativa para os absurdos cometidos pelo homem e que não poderia ser responsabilizado pelo imprevisto colapso da humanidade. As coisas não permanecem as mesmas. Desde a concepção do homem, algumas verdades já foram definitivamente maculadas e é evidente a inadimplência de ambas as partes.

Mas não foram os supostos escolhidos que ingressaram com uma ação por quebra de contrato, com acusações graves de traição, abuso e tráfico de influência contra Deus. Foi um anônimo, encarcerado numa prisão da Romênia, que criou um fato jurídico, uma notícia ou uma anedota fadada ao riso momentâneo e ao esquecimento.

Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 21/10/2005


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