Colcha de Retalhos

"O homem é um deus quando sonha e não passa de um mendigo quando pensa." Holderlin

Textos

POEMA DO MEDO - MARIA FARRAR
“Mas vós, por favor, não deveis vos indignar
Toda criatura precisa da ajuda dos outros.”
Bertolt Brecht

A projeção da barriga no mundo deixa de ser realidade e ganha a representação no envolvente enredo do medo da peça Maria Farrar. O ventre, cicatrizado nos nove anos da minha filha, reacende-se em contrações e é dominado pela fragilidade de dar à luz e pela realização da imortalidade em si na formação do outro. Mas a barriga no mundo é parte de um coro que grita o abandono e a vulnerabilidade de todos. Precocemente, a atriz menina é intérprete da realidade dura que contextualiza a vida de milhares de adolescentes grávidas, dos abortos clandestinos, da discriminação e do medo.

Sem o distanciamento que o dia-a-dia impõe à sensibilidade, o público é envolvido com a trágica história da menina órfã que engravida, tenta abortar, esconde sua “moléstia” e, ao parir, mata a criança por não poder suportar o seu choro. Dorme com o menino morto embalado ao colo e ao amanhecer esconde seu corpo no lavatório. Mas seu crime é descoberto, talvez a lucidez do pós-parto seja uma histérica confissão e conviver com seu ato seja a pior das penas, mas Maria Farrar é condenada pela justiça dos homens de bem e morta no cárcere sem direito a amadurecer e recomeçar.

O teatro abre as cortinas das ambigüidades de todos os seres. Expõe as hipocrisias dos julgamentos distanciados proferidos pelos moralistas ou indiferentes. O poema do medo assume uma leitura teatral e contemporânea na adaptação da peça Maria Farrar realizada por Marina Machado e intimida a platéia com uma necessária reflexão sobre nosso papel no mundo.

Maria Farrar, personagem de Bertolt Brecht, poderia ser qualquer um, mas a menina presa às circunstâncias do seu abandono é protagonista de nossa vulnerabilidade. No palco, anjos, demônios e crianças contracenam, duelam, mas todos são Maria Farrar. O bem que ela não pôde realizar, o mal a que sucumbiu, a criança que ela não suportou parir e que também não cresceu no próprio corpo, mesmo quando envelheceu encarcerada pela indignação dos outros que nunca conheceram a sua realidade ou sentiram o seu medo.

O coro declama o poema do medo de Brecht. Sinto a voz de Barbarella ecoar em minhas entranhas. Ela “caça olhares” na platéia, está tão envolvida com a personagem que suas feições expressam a dor de Maria Farrar, menina mãe condenada. Sinto que devo acalentá-la, resguardá-la da dramaticidade da vida, novamente embrulhá-la no ventre, mas ela, forte no palco, denuncia nossas fraquezas e simulações, deixando claro que o bem e o mal estão presentes em todos os seres e que não podemos julgar os atos desentranhados das circunstâncias.

Aplausos. Os atores se despem dos personagens e sorriem com a manifestação do público de pé. Pela primeira vez Barbarella procura meus olhos na primeira fila. Fico com as emoções sombreadas distantes do umbigo. Com os olhos mareados, percebo que a vida se abre numa nova janela, talvez trágica, mas que nunca mais poderá ser fechada pela indiferença.

N.A.: Maria Farrar, direção e adaptação Marina Machado, estreou no dia 16 de outubro e  ficará em cartaz todo domingo às 20 horas até o final do ano no Teatro Marina Machado em Curitiba.

Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 18/10/2005


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