LINHAS DO LUTO
Conheci meu marido pelo olhar atento de meus pais. Em verdade casei com um desconhecido... - Quantos não são desconhecidos pela vida inteira? A primeira vez que tocou em meu corpo já estava sacramentado nosso destino. Entreguei-me sem resistência, mas com uma enorme vontade de chorar. Meus olhos ardiam as feridas da alma, não senti dor nem prazer, apenas ardência e necessidade de chorar. Os hímens rompidos cicatrizam enquanto nossas intimidades continuam sangrando. Passei a me desconhecer. O corpo parecia mais estranho com o tempo e o seu interior o grande mistério. O outro já não me causava inquietações, acostumei com seu jeito, seu olhar... Os toques acariciavam a rotina. Sem grandes mistérios, a vida se comportava num recife. Eu me atordoava com tantas obscuridades. Instigava-me ser o que desconhecia... Minha silhueta foi adotando formas definidas. A mulher espelhava a sombra aos meus pés... A forma do mundo exterior em contraste com as lacunas de minhas entranhas. Bodas de madeira... O tempo passou em ciclos. Nunca deixei de menstruar. O sangue lavava-me a esterilidade. Ele era um homem amoroso. Tratava-me bem, guardava-me de carinho e proteção, mas faltava algo... Mesmo diante de tanta compreensão, adoecia sob seu olhar acumpliciado. Meus seios secos, ventre vazio eram provas de nossa incompletude. - Não sente falta? - Tenho a ti... - Poderíamos adotar... - Não dividiria tua atenção... - Preciso ser mãe para preencher as lacunas do tempo... - Não poderias. Sabes que és doente... - Pequenos claros. Talvez se tivesse um filho... - Tentamos, mas não conseguimos. Deves se conformar... - Será que nunca? - Deus não quis! O tempo passava e os desejos ficavam adormecidos. Todo mês desfalecia e sangrava. Renascia dos ciclos para viver todas as estações. Bodas de cristal... Meu marido acompanhava o tempo. Nunca tentei penetrar em seus pensamentos. Satisfazia-me com o que exteriorizava seu olhar... As palavras envelheciam, enrugavam a tez da verdade. Nós tentávamos permanecer na segurança de nossa rotina, mas alguns diálogos margeavam nossos interditos. Ele envelhecia envergado em sua sombra, enquanto eu ninava o amadurecido espectro. Bodas de coral... Morreu de repente. Enlutei no outono. As cores já haviam amenizado a tonalidade. As possibilidades haviam desfolhado e restavam-me ainda os galhos nus e firmes. Testamentos, últimas vontades... Tudo disposto conforme a vontade do falecido. Numa carta pude perceber como suas vontades se materializavam no mundo. "É imperioso que possamos controlar o destino. Nossos corpos são as únicas realidades possíveis, a reprodução seria a fragmentação. É necessário sangrar o futuro, deixar apenas o domínio presente. Penetro o mundo como um aborto de mim. Exteriorizo o que há de mais vivo para matar o que não me preenche. Exerço a autoria de um ato impossível. Aborto-me..." "A maturidade cicatrizou-lhe as provocações. Venci a incerteza..." Compreendi os tantos desfalecimentos, enlutei meus sangramentos... Hoje percebo com nitidez que sozinha no mundo não tenho continente. Helena Sut
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 28/02/2005
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