ESTRICNINA
Abro o jornal de quinta-feira (15/03/2007) e passo os olhos pelas manchetes. O título “Mulher morre após fazer pacto de morte com o namorado” me chama atenção e inconscientemente traço um paralelo com a obra do dramaturgo William Shakespeare: Romeu e Julieta. Imagino dois jovens descobrindo o amor, lutando contra as intempéries cotidianas... O romantismo à beira do desespero e a morte como o desfecho da trama. Percorro o artigo e, logo nas primeiras informações, desfaço as analogias poéticas e ergo as cruéis realidades da modernidade. Balzaquiana, realizada profissionalmente e independente encontra o amor num site de relacionamento e durante dois anos mantém um vínculo afetivo cercado de segredos e restrições. O homem apresenta-se virtualmente com todas as características almejadas por mulheres com o perfil da vítima. Logo no primeiro encontro, ele confidencia que é membro de um serviço secreto estrangeiro e que, como tem sua vida rastreada e corre perigo, é melhor que ela não saiba muito dos seus movimentos. Com os meses, a relação se estreita. Ela está mais disponível e vulnerável enquanto as máscaras do amante caem. Ele é perseguido pelos medíocres, uma vítima da inveja de uma sociedade recalcada... Já com algum desencanto e muita persistência, ela o reconhece como um homem desempregado, refém de um matrimônio infeliz, e com dois filhos, mas com algumas alegorias consegue prosseguir na relação sem conhecer as verdadeiras intenções do namorado. Uma pessoa apaixonada é sempre traiçoeira. É a primeira a sabotar os alertas das pessoas próximas e os sinais vermelhos que o instinto de preservação acende diante da constatação das inverdades do ser idealizado. É capaz de empreender uma luta contra as injustiças do mundo que mantém o amante desacreditado e infeliz; compreender as ausências, as notícias inacabadas e as faltas nos compromissos agendados, e ainda apoiar financeiramente o companheiro na recuperação de sua posição social tão propagada. Inúmeras são as justificativas: “Ele só mentiu porque estava envergonhado de sua situação atual.”; “Dormem em quartos separados. Só estão casados por causa dos filhos.”; “Era urgente. Se eu não emprestasse, quem o faria?”. “Ele precisava do carro, só financiei em meu nome. Ele vai pagar as prestações...”; “Disse que é apenas uma questão de tempo.”; “Ele não suporta mais as cobranças da mulher”; “Coitado. Está tão infeliz!”... Após a celebração do pacto, a morte da mulher e a prisão do reincidente golpista da internet, será difícil reconstituir as emoções e expectativas que culminaram no ato desesperado, contudo, existem situações em que não há como prosperar a alegação de inocência, mesmo considerando a tendência na personalidade de algumas vítimas de incorporarem os papéis de ingênuas. Pessoas maduras que, apesar de já terem suportado rupturas e desilusões afetivas, rendem-se às primeiras referências postadas num site de relacionamento e insistem em relações com intimidades construídas de acordo com as fragmentadas informações colhidas e com a íntima e forte contra-argumentação para as incoerências percebidas. A morte da mulher é uma página que será apagada dos cenários virtuais e se repetirá em novos (des) encontros com perversa criatividade. Um enredo triste que se sustenta na carência das pessoas que, decepcionadas com os encontros reais, preferem mergulhar num mar de ilusões oxigenadas por falsos eus, eles, nós... Mais do que uma notícia, o caso (des) amoroso e policial é um tema para reflexão.
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 15/03/2007
Alterado em 15/03/2007 |