FOLHAS SOLTAS DE UM DIÁRIO DE VIAGEM
COMBOIO Se o tempo pudesse me alcançar nos trilhos que correm no corpo, estriando o pensamento, romperia as estações sem partidas ou despedidas com a pulsação de um coração de ferro. VINHEDO Rabiscam as faixas da vida nos galhos secos das vinhas nuas. Desfolhadas no tempo são frutos que fermentam no sangue dos aflitos, conservam-se nas memórias dos amantes e derramam a tinta cor nos sonhos enraizados no ventre fértil da sucessão dos dias. MULHERES DE LUTO Fecham-se os espelhos na negra veste. Os passos são marcações das horas que douram nas tardias silhuetas. O portal do jardim encerra a infância com os vestígios do cheiro do jasmim. O canto é a suave brisa nas vidas despidas das próprias uvas. A vindima, enfim, colhe os frutos, fermenta o vinho nos barris de carvalho e o derrama sobre as lembranças embriagadas, enquanto o sino na torre da igreja descansa no badalar das estações. LARGO DA MISERICÓRDIA – SANTAR Na praça de Santar, o tempo encerra os ponteiros sob o manto da Nossa Senhora da Misericórdia. As senhoras enlutadas caminham ao ritmo de nostálgicas melodias. Os sonhos correm por entre as folhas douradas enlevados pelo canto outonal das vindimas. Misericórdia! A vida prossegue em passos lentos... DÃO Turvos pensamentos afagam a tinta taça. Uma gota escorre e sangra a toalha de linho. Derrama o gosto por entre lábios nostálgicos. O vinho, à luz, é rubi. Bebida diáfana que dá viva cor às imagens que se embriagam e festejam o mosto da vida às margens do rio Dão. RUA DA CARREIRA O pensamento tropeça nas histórias que imagina nas pedras graníticas do calçamento e do muro na Rua da Carreira em Santar. Parede do tempo represa os nascimentos e os lutos. Acaricio a superfície. Sinto a poeira das vivências esfarelarem, vestígios da áspera superfície, enlevo-me ao tempo das ternas lembranças no veludo do musgo e perco-me nos silêncios escondidos sob as heras. ESTAÇÃO DE NELAS O tempo me aprisionou na ficção. Quando percebi a vida me pegou pelas mãos e me deu rumo. Novamente o comboio. Ser e estar a exteriorização dos meus sentimentos, o vagão rompendo a noite com a despedida rasgando a pele. Tantas estações e ainda o aceno, a palavra muda atrás da janela, o gosto salgado da saudade, as pálpebras sonolentas com a repetição de talvez... TEJO Entre as margens do Tejo, sou rio magenta no horizonte adormecido... Sou a prova do vinho no dia de São Martinho, os tantos portos esquecidos além oceano, as tantas estações que atravessam o destino... Sou o tempo e o continente, o cais e o curso, a margem e a margem... Sou rio que deságua, alaga e chora, sou rio que adormece com o acalento dos tardios movimentos do sol de outono, sou rio que evapora com a suave brisa dos ancoradouros... Sou o passo e a terra, o renascer na avenida entranhada nos portais iluminados, o sangrar dos caminhos que ainda sussurram os sonhos, o cicatrizar da percepção com uma nova memória... MARIO DE SÁ-CARNEIRO Lisboa. Acabei de passar pela Rua da Conceição ainda iluminada pelo Portal da Rua Augusta. Uma sombra alongada buscou na calçada distante a placa indicada pelo poeta João Videira Santos. Uma semente da primavera portuguesa desabrochada num maio distante. Sinto os passos apressados de Mario de Sá-Carneiro correndo a vida com versos labirínticos, um arrepio, um silêncio profundo de buscas e encontros... Reticente, flutuo até cair nos solos outonais de quem prepara a colheita da despedida. Vindima tardia. Contraio as palavras para parir as lágrimas, sustento o olhar para me encontrar no horizonte anoitecido. Guardarei os frutos ressecados, o tinto gosto, as folhas douradas enfileiradas na faixa da vida para me embriagar com o vinho decantado nos tonéis da poesia. LARGO DE SÃO CARLOS Anoitece. Os sinos das igrejas anunciam as orações entardecidas. No prédio de quatro andares no número 4 do Largo de São Carlos, as suspensas janelas do quarto andar espreitam o movimento das ruas. Libertam o primeiro choro do menino nascido em 13 de junho de 1888 e se estendem nos passos versos dos heterônimos de Fernando Pessoa. MARTINHO DA ARCADA Reverberam os versos na voz aveludada do tempo. Na mesa conservada entre livros, a memória do poeta Fernando Pessoa descansa nas tantas tardes ancoradas no Café Martinho da Arcada. Sua mesa permanece com os movimentos suspensos. Assiduidade das inspirações rabiscadas em folhas soltas douradas pelo olhar tímido atrás das lentes. Sob as arcadas, deixo-me lançar ao outonal anseio de desfolhar os versos e realizar os ciclos das contínuas faixas de vida. DOURO A tarde ancorou na Ribeira. Porto anseio dos dias esculpidos no tempo. Já memória. As torres das igrejas se erguem num céu desprevenido. Silêncio de sinos, orações enlevadas... Com os nós desamarrados, deslizo no rio Douro suavemente. Sorrio o rio, leito horizonte, sou água, vinho, fonte... Embriagada com os despertar dos tintos secos portos, sou destino, abismo, reencontro... Quantos sonhos já não foram colhidos e sorvidos nas taças do tempo? Quantos pensamentos não foram amarrados em novas faixas de vida para sobreviverem às estações frias? Quantos rios não convergem nos mares dos navegantes? Percebo as sombras pontes atravessarem as carnes das margens num ir e vir autômato e sem gozo, enquanto permaneço curso, rio, leito, margens... Espelho dourado. Rio deságua no pôr-do-sol de outono. PARTIDAS Acordei de repente com estranhamento. Busquei as janelas manuelinas e não as encontrei. A noite chovia na janela e demorei a perceber que havia tropeçado nas memórias. Interrompi o sonho com reflexos das vivências em carne viva. Hiato de trilhos. Ainda pude sentir o retomar lento do trem nas pulsações do meu coração. Adormeci madrugada com as cores douradas das estações de onde parti...
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 21/11/2006
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