UM CAFÉ E AS POSSÍVEIS LEITURAS
Dizem que a leitura da borra do café prediz o futuro... Numa pequena cantina típica italiana, a família atende, cozinha e deixa os fregueses compartilharem suas intimidades... Ambiente familiar que se prolonga e agrega os mais desgarrados. A foto de uma senhora em preto-e-branco na parede completa o cenário doméstico. Almoço tardio. Aos poucos, o ambiente se torna vazio e a família começa a retirar os pratos expostos no bufê. A senhora se aproxima e me oferece um café servido numa pequena cafeteira italiana. Ela tem as feições suavizadas após a correria do almoço. O café entorna e ela reclama do formato das modernas cafeteiras enquanto dedilha o bico do recipiente. Pergunto onde moravam na Itália. Ela responde com orgulho que Vitório é de Roma... Após uma pausa e um olhar distante, ela diz ser libanesa. Sua revelação me surpreende. Sempre pensei que ela era uma típica matriarca italiana, com seu marido, filhas e netos. Algumas vezes imaginei como se dera a imigração, o nascimento das filhas no Brasil, a identidade da senhora do retrato antigo, as possíveis viagens à cidade natal... Já havia idealizado um roteiro e, de repente, descubro a conjunção de duas culturas com raízes já brasileiras a desconstruir um enredo preconcebido. Como? Quando? A senhora percebe a minha surpresa e começa a costurar sua história desde o tempo em que saiu de Joinville para estudar num colégio interno em Curitiba. Uma menina de dez anos, separada da família, que encontrou, na família italiana da melhor amiga, a acolhida para os longos períodos longe de casa. Sucessão de exílios: Líbano, Joinville... A cumplicidade das meninas crescia e elas buscavam, no chão arenoso de um esconderijo no colégio, o solo para construírem suas fantasias. Desenharam dois castelos e, durante o trajeto idealizado, a menina libanesa quebrava o pé e era salva por um príncipe montado num lindo cavalo branco. O cavaleiro a carregava até o castelo da amiga e todos viveram felizes para sempre. Quem era o príncipe? O irmão mais velho da amiga, Vitório, já um rapaz de dezenove anos. Seis anos... A amizade das jovens permanecia fiel ao pacto reafirmado tantas vezes, o desejo de serem irmãs era quase uma realidade no dia-a-dia das moças. Cruzaram a tênue linha da puberdade juntas e se acumpliciaram das impressões de iniciação no mundo adulto. Num passeio ao litoral catarinense, a realidade se apropriou de um desenho da infância para alicerçar o acaso. A jovem libanesa não queria atravessar um estreito curso de água para não molhar a calça comprida, Vitório a carregou nos braços... Todas as emoções desenhadas no chão arenoso desabrocharam num olhar diferente, num arrepio descobrindo a alma apaixonada da juventude. Pela primeira vez perceberam o amor. Casaram-se um ano após a significativa travessia. A senhora continua a narrativa. O casamento de 40 anos, os filhos, a família, a continuidade da casa de massas inaugurada pela sogra há 48 anos, a viagem à Itália no final da década de 80 e a impossibilidade de ter ido ao Líbano na época devido às guerras, os netos... “Tive medo. Minhas raízes estão aqui.” A senhora fala apontando para as filhas. Silêncio. O casal entreolha-se com brilho, observado pelas duas filhas que sorriem timidamente. Disfarço um certo constrangimento e olho, na xícara esvaziada, o desenho da borra de café. A leitura é universal: humanidade, encontro, compromisso, amor... Não há como predizer o futuro se não houver um passado que alimente os sonhos e transforme a realidade numa expectativa constante.
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 30/06/2005
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