Colcha de Retalhos

"O homem é um deus quando sonha e não passa de um mendigo quando pensa." Holderlin

Textos

AINDA OUTONO
Véspera. Ainda não consigo arrumar as malas.

Passo pelas ruas de Lisboa com a despedida versejando as sombras. Tento compor com as lembranças um derradeiro poema à margem dos rios navegados pelos grandes poetas lusitanos. Eis a saudade, as reticências... A palavra portuguesa, tão entranhada, e que agora ganha o mundo para me contextualizar numa nova realidade. É início, meio e fim. O verso, o poema, o pensamento reticente e sem pontuações.

O que faço com as vivências que se transformam em fotografias, livros e memórias para caberem na bagagem? O que faço com os excessos que abandono à sorte do vento das estações tardias?

Cruzei o oceano para sentir saudade de mim. Reconhecer o meu significado tão distante dos portos que ancoram minhas certezas.

Acaricio as paredes da Baixa, escorrego nos trilhos dos elétricos até a margem do rio Tejo para perceber meu curso interrompido pela foz do tempo. O caminho de janelas orvalhadas consome-se na iluminação do Castelo de São Jorge e nas sombreadas ruas da Alfama e da Mouraria.

Parto ao amanhecer e ainda não arrumei as malas.

Passo pela estátua de Fernando Pessoa no café A Brasileira com um breve aceno, sinto o constrangimento do poeta embriagado com sua timidez entre tantos turistas. Na rua da Conceição, tenho certeza de ser labirinto sob a placa de nascimento de Mario de Sá-Carneiro num junho longínquo. Atravesso o portal, as arcadas, o largo, as vívidas impressões que se perdem na noite presente.

No café Martinho da Arcada, dedilho a taça de vinho com a presença das videiras, das folhas douradas, dos frutos secos, das faixas de vida, dos versos desenterrados, nos largos que se abrem nos becos de minhas inquietações, na moderna Lisboa que dá continuidade para minha historiada trajetória... Sentada sob os pilares do tempo, observo a mesa solitária de Fernando Pessoa tão próxima do riso solto do almoço com o poeta João Videira Santos.

O gosto tinto do magento horizonte outonal agora amarga e já não ouço o farfalhar das folhas secas.

Bebo-me em sangue, pele, construções, ruínas... Atravesso os portais, avenidas, largos, querendo reter todos os momentos... E ainda não consigo arrumar as malas...
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 13/11/2006
Alterado em 21/11/2006


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