POBREZA, SE NÃO MATA, ENGORDA.
No país do idealizado Fome Zero, somos surpreendidos sempre com as metáforas culinárias que recheiam os discursos das autoridades. Talvez a diversidade de especiarias alicerce algumas afirmações gulosas. Quem sabe uma boca cheia de castanhas (as legítimas do Pará) não tenha mais o que fazer... Notícias alardeiam que os observadores da fome ganharão gordos salários, reportagens focalizam um pacote de farinha, alimento mensal de uma família de retirantes, anúncios convidam para o lançamento de um novo fast food... Os corpos traçam a geografia da fome. Crianças com enormes barrigas e com os membros raquíticos, adultos carcomidos de cheiros e sabores são presenças constantes nas estatísticas. No país em que se plantando tudo dá, as cestas básicas são extraviadas e alguns moradores padecem de fome. Mas... Perco o apetite pela untada política. Deixo-me preencher pelo domingo ensolarado e, com um café com creme e um pão de queijo, abro o “Jornal da família” do O Globo. O título e as fotos surpreendem: “Pobreza engorda”. Os pobres estão engordando mais do que os ricos por causa da baixa escolaridade, vida mais sedentária e alimentação inadequada. As ilustrações são retratos das silhuetas desenhadas nas refeições rápidas da Central do Brasil no Rio de Janeiro. A matéria continua com as afirmações da professora Rosely Sichieri, especialista em nutrição, na Universidade do Estado do Rio (UERJ): dados de 1996 no Rio de Janeiro mostram que os que afirmaram ter passado fome são mais obesos dos que disseram não ter passado fome no mês anterior; os que passaram fome apresentaram maior deposição de gordura no abdômen, fator de risco para doenças como hipertensão, infarto do miocárdio e diabetes; os alimentos mais baratos são os mais calóricos... Tantas informações são exauridas nas academias de ginástica superequipadas, nos primaveris desfiles de corpos desenhados e saudáveis das classes mais abastadas, e se perdem na gordura visceral dos que habitam ambientes escassos e sedentários e que não compreendem a dimensão do problema que estoura em seus corpos. O sistema público de saúde não trabalha com a promoção da saúde, limita-se a atender à doença nos ambulatórios disponíveis. As legendas das fotografias desfilam na reportagem. A empregada doméstica, que trabalha para uma família de vegetarianos, prefere fazer um lanche gostoso, barato e gorduroso numa barraquinha na rua a comer os pratos que prepara no trabalho. A obesidade é resultante da desinformação. A falta de escolaridade faz do obeso um refém das propagandas de consumo de alimentos calóricos... A notícia converge para a política... Todos somos reféns dos projetos de educação e de saúde a serem implementados... A matéria encerra na interminável fila de obesos para a realização da cirurgia bariátrica, suas peculiaridades e enfermidades. O menino de 15 anos que não estuda e não sai de casa, pois vive preso aos seus 280 quilos; a dona de casa que não pode andar e lamenta ter perdido a infância do filho... Todos são nomes gravados na lista de espera do hospital público carioca que realiza a cirurgia... Perco a fome. Deixo a metade do pão de queijo no prato e o café esfriando na caneca. Tento compreender o que meu desjejum representaria de calorias na dieta ideal. Mudo completamente a programação. Abandono o jornal, afinal, a busca de informações pode ser a causa de uma vida sedentária, e vou caminhar no parque, libertar-me do peso da realidade e de algum resíduo de gordura do lanche matinal que, por ventura, tenha se alojado em meu abdômen.
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 28/06/2005
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