Colcha de Retalhos

"O homem é um deus quando sonha e não passa de um mendigo quando pensa." Holderlin

Textos

A VIDA É BELA
A VIDA É BELA.
(seja na terra, seja no céu...)

“...sendo humanos, todos precisamos de ajuda. Hoje eu, amanhã você. Mas essa necessidade de ajuda não significa que um é desamparado e o outro, poderoso. Estar desamparado é uma situação transitória; a capacidade de ficar de pé e andar com as próprias pernas é a situação permanente e comum.”
Erich Fromm

“Mãe, não chora! Mãe, pelo amor de Deus... Pare de chorar! Mãe...”
Aterrisso do primeiro vôo do percurso... Sou envolvida pelo desespero da menina que tenta acalmar a mãe em prantos. Tento ser discreta, não invadir a dor da mãe, a inquietação da filha... A filha continua gritando, a mãe se desfaz em lágrimas... Busco as razões para o que observo, mas como construir um roteiro sem saber o perfil das personagens...
No saguão do aeroporto, sento próxima à sala do novo embarque com o livro “A arte de amar” de Erich Fromm. Mergulho na teoria do amor. Projeto a mulher no oceano de vivências, percebo a intensidade de cada onda...  Novamente, sou surpreendida pelos gritos da filha. Deságuo no amor materno...
A mãe continua sem controle. Chora compulsivamente e tem gestos bruscos ao lado da menina de rosto de contos de fadas e grandes olhos claros. Um senhor de cabelos brancos segura a mulher pelos ombros e tenta em vão consola-la. A menina se cala e permanece com o olhar triste.
O senhor sai com a criança no colo e deixa a mãe chorando sozinha. Aproximo-me, pergunto se posso ajudar... A mulher continua em pânico, chora, fala frases desconexas, repete com insistência que voltará para Curitiba... Tento convencê-la a continuar nosso vôo até o Rio de Janeiro, falo sobre sua filha, lembro da minha que me espera, mas ela corre e entra num táxi...
Entro na sala de embarque, reencontro o amor fraterno no livro do Fromm, distraio-me por instantes, mas sou interrompida pelos passos infantis da menina sob o olhar atento do senhor. Ela sorri e me olha com insistência. Desisto do livro e inicio uma nova leitura... Pergunto seu nome, falo de minha Barbarella, das nuvens, do céu azul, dos laços vermelhos de seu penteado...
Isabela me apresenta ao avô e faz um atropelado relato: a mãe tem trauma de avião, ela vai encontrar o pai que mora no Rio, o avô irá passar a semana com ela, a mãe voltou para Curitiba de ônibus...
A alegria da menina é contagiante. Mostra as borboletas tatuadas no braço, fala do amor que sente por toda a família, abraça o avô, rodopia, aponta os aviões, ensina brincadeiras com as mãos, num pedaço de papel, desenha três carinhas de corações e escreve, com sua letra de cinco anos, que sou “legau”... Sou adotada por tanto carinho. Lembro de Barbarella e combino encontros no parque. Selo a amizade das crianças com o desejo de permanecer próxima da alegria das infantes.
O avô aproveita nossa amizade para providenciar uns telefonemas e avisar à família que a filha está retornando.
Troco de lugar no avião para sentar ao lado de Isabela. Os olhos da menina iluminam os céus com brilhos distraídos. Com ela, fui pela primeira vez à cabine do comandante, encantei-me com os inúmeros botões coloridos, com a grandeza de voar sobre as pálidas nuvens num dia tão azul.
Quando chegamos ao aeroporto, Isabela correu para o pai que a aguardava com um grande pacote azul, enquanto minha menininha de vestido florido me esperava impaciente com uma braçada de rosas coloridas junto à porta de vidro. Aterrissei no sorriso inaugural dos dentes crescidos durante as férias.
Quando fui embora, com as malas e as rosas, Isabela correu em minha direção e me abraçou. Despediu-se com a certeza de um novo encontro. Isabela e Barbarella se olharam com a cumplicidade própria de quem nasceu para fazer os outros felizes. Li, em seus rostos, o pleno significado da arte de amar.

Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 29/01/2005


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