E o colega merece?
Todos os dias ele chega no horário com os passos largos e a cabeça baixa. Sobe os degraus com firmeza e vai para o escritório. É um funcionário regular. Está sempre disposto a novas funções, mas não tem a genialidade para redesenhá-las. Assume suas ocupações com as normas estabelecidas e, assim, sem grandes sobressaltos, está na função há quinze anos e parece feliz. Durante as greves, ele mantém a rotina. Chega um pouco mais cedo para não cruzar com os grupos de manifestantes e sai um pouco mais tarde. Todos sabem que ele trabalha, ele sabe, mas nunca o denunciaram, ele também nunca assumiu uma posição, nunca compareceu à assembléia alguma, nunca votou nem a favor, nem contra... Sua ausência era a legítima abstenção. O líder sindical ainda tentou uma aproximação, porém nosso personagem sempre fugia. Olhava para baixo, desconversava, falava sobre o tempo e continuava o trajeto com seus passos apressados. Ele era uma ovelha desgarrada que poderia contagiar todo o rebanho! Papos durante o cafezinho, reuniões de trabalho, pequenos gracejos... Todas as tentativas de intimidade eram prematuramente abortadas. Ele não dava espaço para perguntas, não queria preencher as respostas. Sua vida particular era um mistério. Ninguém sabia onde morava. Ele não gostava de conversar sobre intimidades. Para ser claro, também nunca demonstrou interesse pela vida de ninguém. Alguns diziam que ele morava com a mãe viúva, outros, que era um típico solteirão. Mas tudo era especulação, não dava nem para intuir algo em sua normalidade. Era apenas um funcionário que não gostava de mobilizações, desconfiava de todas as relações profissionais e olhava como desaprovação para as pessoas de pequenos passos. Era um homem com muitas manias... Mas quem não as tem? O líder sindical não desistia. Criou uma comissão na porta do órgão para tentar constrangê-lo com a presença de manifestantes e conquistá-lo com as coloridas bandeiras, mas ele continuava a entrar no edifício com seus passos largos. Um dia o líder se aproximou. Começou com o discurso moderado afirmando a gravidade do momento, a necessidade premente de lutar pelos direitos, as conquistas ao longo dos anos e, diante da passividade do funcionário, passou ao tom panfletário e gestos largos, declarando ser imprescindível a participação de todos no movimento. Ele continuou quieto, olhando para o líder, e por fim falou com a voz entoada: “Já pensei algumas vezes nisso... E sempre me pergunto: E o colega merece?” Um pequeno movimento com a sobrancelha redesenhou sua face junto à tímida linha da ironia no canto dos finos lábios. Aproveitou a hesitação do sindicalista e entrou no prédio com os passos largos e a cabeça erguida por instantes. O líder ficou sem entender. Esperava qualquer resposta, alguma convicção ou covardia, mas nunca uma indagação tão vaga... “Que colega? Quem é ele para falar em merecimento?” O líder sindical se juntou à manifestação. Escutou alguns desaforos dos transeuntes e tentou encorajar os companheiros. Conquista de direitos é uma luta solidária, uma conquista da resistência de um grupo coeso. E não um jogo de montar que se completa com algumas peças fragmentadas. Parou desanimado. Aturdido pelas dúvidas da maioria dos associados e pela ausência de angústia do colega fura-greve, teve vontade de desistir. Com toda a certeza, o colega não merecia...
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 25/06/2005
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