“AMOR: INSTRUMENTO DE TORTURA”
O rubro cartaz me chama a atenção na Casa de Cultura Laura Alvin: “Amor: instrumento de tortura”. O título instigante, a relação de autores consagrados e a universalidade da temática amorosa me convidam a permanecer e esperar o início da apresentação. O descompromisso de estar de férias e poder compor o tempo com os interesses costurados no prazer e no ócio. A primeira impressão é de encarceramento. As paredes de pedra da sala e a jaula no centro do palco impressionam. O amor demonstrado nos encontros inocentes, na ansiedade dos enamorados e na consumação da paixão nas laterais do palco contracena com a representação dos mitos enjaulados no centro das relações amorosas e projetados em nosso inconsciente. Aos poucos, a perfeita seleção de músicas ameniza a tensão e afirma a liberdade de livres espectadores. Está assegurado um pretenso distanciamento. Entre encontros juvenis, surge o primeiro capítulo, representação do “delírio” inspirada no texto “Besame Mucho” de Mario Prata. A Virgem Maria, símbolo maior da castidade na cultura ocidental, tenta seduzir o cangaceiro com trajes sensuais. O homem, apesar de devoto, cede aos encantos da santa mulher e não compreende a sensação feminina de incompletude. O amor pelo sagrado, a sedução, a consagração e a morte. A platéia ri diante do absurdo. O “pecado” é interpretado em Salomé de Oscar Wilde. A excitação crescente da jovem com o discurso religioso de João Batista expande-se além das grades dos interditos. As palavras sagradas ganham conotação erótica e instigam a linguagem corporal. Salomé encontra no desejo o sentimento da transgressão ao sagrado enquanto João Batista repele o mundo profano. No texto de Wilde, Salomé não é o instrumento usado pela mãe Herodíades para a morte de João Batista, é apenas uma mulher que quer ser desejada e diante da negação pede a cabeça do homem para lhe beijar a boca. Bárbara é o exemplo de “fidelidade” em Calabar de Chico Buarque e Rui Guerra. O diálogo ríspido e a movimentação do casal pendurado nas grades preenchem de inquietação a platéia. Perde-se a racionalidade no instinto de continuidade da personagem. O amor pelo amante morto permanece no contato com o traidor Sebastião. O corpo vivo busca o prazer na lembrança. Há um certo constrangimento no público, uma perplexidade exposta nas ambigüidades humanas. O “adultério” prende-nos na compaixão e no desespero. A traição marca a vida do casal encarcerado numa relação sádica e masoquista. A impossibilidade de se libertar e recomeçar. No texto de Tennesse Willians, “Gata em teto de zinco quente”, o marido sinaliza para a mulher que a única saída é se atirar do telhado... Mas a mutilação está exposta na vida a dois, ambos estão deformados pela incapacidade de superação do passado ou de reconstrução do futuro. A platéia torna-se refém da “rejeição”, capítulo com trecho de “Navalha na Carne” de Plínio Marcos. O diálogo mordaz entre a prostituta e o gigolô marca a pele com a cicatriz irreparável do envelhecimento e da miséria humana. Quem não se desespera perante o desprezo do ser amado? Quem deseja perder a mocidade aos olhos do outro? Otelo surge desesperado. Observa a esposa Desdêmona adormecida e enlouquece com o ciúme avassalador. As vozes declaram a infidelidade e Otelo, certo da traição, sentencia a amada à morte. O amor é estrangulado pela loucura. “Ciúme”. A platéia ri com o trágico texto de Shakespeare. Riso estranho diante de situações tão limites, mas a tragédia é a base da comédia e talvez justifique a expressão do nervosismo representado no espelho do ciúme doentio do personagem. Todos devem ter reencontrado alguma vivência refletida. O “destino” é marcado por Édipo Rei de Sófocles. A revelação dos reais vínculos entre Édipo e Jocasta reacende a maldição proferida pelo oráculo. A verdade exposta nos condena às repetições dos complexos elaborados por Freud. O desejo e a morte se aproximam. O “medo” é abordado na representação do excelente texto de Arnaldo Jabour, “Eu te amo”, no encerramento da peça. O receio de amar e a impossibilidade de criar “nós” fortes desatam o choro dos personagens fragilizados pelo sentimento. Os amantes se desesperam diante do encontro possível. A transparência de ser no outro... O erótico encenado nas laterais por dois casais de amantes converge para o centro de uma relação fragmentada no medo e encarcerada na descontinuidade de cada um. Georges Bataille declara a carga de sofrimento de uma relação apaixonada no ensaio “O Erotismo”: “A própria paixão feliz impele a uma desordem tão violenta que a felicidade em questão, antes de ser felicidade possível de se gozar, é tão grande que é comparável a seu contrário, o sofrimento.” Os atores da Cia. Pop. de Teatro Clássico saem da jaula da ficção e recebem os aplausos do público. O texto e a direção de Demétrio Nicolau são consagrados na continuidade das interpretações individuais. Cada espectador se compreende parte do roteiro e sai do teatro elaborando as próprias vivências amorosas e tentando aprisionar no esquecimento as arbitrariedades das quais participou de alguma forma. Alguns casais saem em silêncio ou tecem comentários sobre a peça assistida, outros insistem em discutir a relação... Volto para casa caminhando à beira-mar. Deslizo nas sinuosidades desenhadas no calçadão carioca e posso sentir a suave brisa entoando os encontros juvenis, as arrebatadas paixões, as despedidas... Reconheço o brilho nos olhos e intercalo os passos com as relações maduras. A ficção dá novo formato às experiências amorosas e é incorporada pela leveza da maresia. Longe das jaulas, ganho o oceano dos possíveis amores na liberdade de assumir a autoria de um novo horizonte. À margem dos centros, realizo o amor como uma metáfora possível de interpretação.
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 24/06/2005
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