Colcha de Retalhos

"O homem é um deus quando sonha e não passa de um mendigo quando pensa." Holderlin

Textos

MELHORES INTENÇÕES

Acordo dos sonhos distantes com os apresentadores do noticiário matutino. Às vezes, a forma caleidoscópica das exposições me prende a atenção: modelos brasileiras ganham as passarelas do mundo, assassinatos de crianças pobres, reuniões de ricos em estações de esqui, futebol, pagodes ministeriais, celebridades... Tantas informações tecem um bordado complexo e, ainda sonolenta, tento compreender a essência. Sou rendida pela sabedoria do compositor que aconselha “deixa a vida me levar...” ao final da reportagem.
Pego um extrato bancário em cima da mesa e tento criar a correspondência com meus gastos: o aluguel, luz, CPMF, colégio de Barbarella, plano de saúde, CPMF, condomínio, dentista... Grandes e pequenas cifras desenham meu perfil financeiro... Desço o elevador e as notícias se erguem no presente. As intenções do representante brasileiro tentam embarcar em viagens internacionais e ganhar credibilidade para a concretização de sua missão messiânica.
A intenção de indicar, aos países ricos, a criação de uma contribuição internacional para um fundo de combate à miséria no mundo me lança em idos mares e aporto na criação de uma contribuição vinculada à saúde. Lembro das intenções, das palavras do ministro, da repercussão no mundo político e social... A contribuição se fortalece, torna-se independente e, sem vinculação alguma, incorpora-se no orçamento. A saúde da economia é curada em doses de juros de uma dívida maior...
A contribuição se ajusta à precária saúde financeira das famílias consideradas produtivas. Hospitais permanecem com equipamentos ineficientes, profissionais da saúde continuam mal remunerados, filas de corpos tentam alguma intervenção, salas vazias são retratos dos infinitos processos burocráticos...
Tento não permanecer vinculada às contribuições que não posso escolher. Compulsoriamente contribuo e meu pensamento discricionário tenta estabelecer o perfil da contribuição internacional. A fome dos homens esquecidos nos territórios fragmentados seria aos poucos trocada pela desnutrição de alguma bolsa de valores de mercado emergente. Um seguro contra o enfraquecimento de uma sociedade capitalista e globalizada.
Saio do prédio e tropeço em uma família sentada na soleira da padaria. Alimentam-se com a contribuição de alguns fregueses que ainda olham para os chãos de seus frágeis passos. Continuo o caminho e atravesso a fila dos que aguardam atendimento nos ambulatórios públicos... A velhice e a doença se enrugam nas feições cansadas... Algumas crianças abatidas teimam em brincar ao redor da realidade...
O constrangimento me impede de contribuir com um olhar de solidariedade. Calo o grito de indignação genérico e continuo o trajeto, tentando criar uma forma de contribuição distante dos discursos da sociedade do espetáculo.
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 24/06/2005


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