UMA FÁBULA URBANA
(baseada num fato real)
Aos poucos, o olhar do menino foi perdendo a vivacidade da infância inaugural. A alegria exacerbada em seus inquietos movimentos se transformou em pequenas lamúrias. A primeira vez que percebi a existência de algo estranho foi quando ele se esquivou do meu contato. Permaneceu tristonho, deitado no sofá diante de um jornal diário. Cinco anos. Os brinquedos jogados no canto, os irmãos no quintal... Restava o menino de expressão abatida, amassado de dor e de cansaço diante da televisão. O diagnóstico... A família não entendeu ao certo o que significava a doença, mas teve aquele pressentimento de coisa ruim. Leucemia... Câncer no sangue... Os gestos nervosos tentavam esconder a gravidade. Insistiam em dizer para o menino que não era nada, que ia passar... Novenas foram agendadas no bairro... Os vizinhos se revezaram nas ajudas possíveis; a mãe deixou o emprego de diarista, e logo o tratamento foi iniciado no Hospital das Clínicas em Curitiba... Previsão de idas e vindas ambulatoriais para os próximos dois anos. Nossa rotina definitivamente entrecortada pela frágil saúde do menino... Amanheceu com o cheiro forte de café recém-coado. O menino sentou-se à mesa, mas não teve apetite para comer o enorme sonho. Os pais olhavam para tudo com nostalgia, já sentiam falta daquele fragmento de manhã... Os irmãos continuaram dormindo. Seria difícil explicar... Era difícil entender o porquê de as crianças também adoecerem... O menino se aproximou e afagou meu dorso suavemente. Olhava-me com o olhar terno, um pouco triste, preenchido de despedida... Não lhe disseram nada, mas sua malinha e os tantos brinquedinhos que ganhara nos últimos dias não evidenciavam outro movimento se não o de partida... Dois dias... A cada movimento na soleira da porta, alimentava-me de expectativas. Os outros meninos também estavam inquietos. O pai tentava suprir a ausência da mãe, camuflar a falta do menino, porém os irmãos teimavam e resistiam às mudanças. Tentei me enganar com as sombras... Queríamos toda a família reunida! Aproveitei uma distração e ganhei a rua. Deixei-me levar pelo instinto. Queria encontrar o menino no meio de tantas construções cinzas e carros coloridos. Andei mais de trinta quilômetros, cruzei a fronteira dos municípios. Senti sua presença dentro de um enorme hospital. Tentei entrar, mas não permitiram. Passei, alguns momentos, parado no meio-fio, olhando as tantas janelas, enfraquecido pela dor das feridas... “Coiote! Coiote!” A mãe do menino se aproximou entre lágrimas e sorrisos. Falava alto e gesticulava... Tentava encontrar alguma explicação racional para o meu aparecimento. “Como? Logo um cachorro...?” As portas se abriram. De repente, havia me transformado numa personalidade. Os médicos e as enfermeiras corriam para me conhecer, até mesmo alguns jornalistas... Todos queriam descobrir como consegui chegar... Fui de encontro ao menino. Ele sorriu e me abraçou forte, permanecemos juntos durante muito tempo e pude ler em seus olhos a certeza do regresso... Ganhei um enorme saco de ração e uma nova almofada para o meu pequeno canto. Cuidaram dos meus ferimentos, levaram-me para casa num carro grande e fui festejado pelos vizinhos que se amontoavam no portão. Tornara-me em um herói e só queria encontrar o meu melhor amigo... O menino já voltou para casa, com pelo menos quinze carrinhos novos, e já se prepara para uma nova etapa do tratamento. Nosso encontro foi noticiado na capa no jornal “Gazeta do Povo” de domingo (21/03/04): “Amizade – Menino foi visitado no hospital pelo seu cão de estimação - Presença de Coiote ajuda no tratamento do dono” e ganhamos uma matéria de destaque com foto e tudo... Os especialistas dizem que o amor do animal é incondicional e que eu não criei expectativas em relação à saúde do meu dono. Surpreendo-me ao ser distinguido pelo afeto... Afinal, não foi o homem quem escreveu e protagonizou as mais belas histórias de amor?
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 24/06/2005
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