Colcha de Retalhos

"O homem é um deus quando sonha e não passa de um mendigo quando pensa." Holderlin

Textos

ROSAS E ESPINHOS CONTEMPORÂNEOS

Busca as palavras que sustentaram alguns sentimentos no baú de recordações. Cartões coloridos saltam dos guardados e restauram as vivas cores e os suaves perfumes da estação passada. Parecem desnudar a primavera da relação vivida. Eternizam, como uma linda pintura numa tela, as flores colhidas no tempo fértil.
A mulher sorri docemente. Não se enganou, viveu apenas.
Abre os envelopes mais envelhecidos, sussurra cada palavra na descoberta do desejo. Seus olhos brilham, distantes, perdem-se na tentativa de reencontrar a imagem, os primeiros olhares, os toques tímidos, as calorosas entregas, as palavras... O amor consagrado nos versos transcritos, nas juras eternas, na entrega incondicional ao sentimento, na transparência...
As palavras exalam o perfume do corpo ausente. A inquietação dos dias distantes, a saudade na lembrança, a expectativa dos encontros... A mulher fecha os olhos e sonha os sonhos daquele instante, repete as palavras tantas vezes ditas, descansa na certeza das promessas...
Novas cartas se abrem. Alguns meses, tantas incertezas, as diferenças começam a surgir na relação, problemas rasgam pequenas feridas no dia-a-dia do casal. As distâncias são momentos de reflexão, os corpos já não estão tão presentes, a coragem é permanecer lutando.
Existe amor e talvez um futuro. Saudosa, a palavra assume o tom otimista, as juras ainda são eternas e assumem o tom dourado das folhas secas de outono. Hão de fortalecer as raízes...
A mulher passa a mão pelo corpo, tenta desenhar em si o outro distante...
Os envelopes brancos são os últimos. São mensagens distantes de quem não consegue se separar, frases feitas, tentativas de manter acesa a chama... As palavras se calam diante das flores enviadas. O silêncio das juras adormecidas, dos corpos saciados, dos sentimentos em mar aberto...
Um enorme abismo surge no olhar da mulher. Os escritos relatam sua viagem amorosa: a descoberta, o domínio, o desencanto... Em alguma tempestade a canoa naufragou e os sobreviventes permaneceram acreditando que ainda poderiam...
O contraste das diferenças, os problemas cotidianos roendo as almas, os corpos vivos tentando alienar o pensamento, as palavras queimando as realidades... Três anos, as estações... De repente, o fim...
Uma palavra perdida no telefonema, uma mensagem que talvez alguém entenda num continente distante...
Não tão de repente como alertam as palavras. Eles não poderiam se transformar se eram em essência o que incomodava o outro. Os cartões coloridos se congelaram no inverno das percepções e eles não estavam preparados para viver as estações...
A mulher passa as mãos no ventre preenchido, talvez da última mensagem ainda envelopada sob a carne, e tenta encontrar, no que não quis ver, o motivo de sua solidão.
O que adianta as palavras rebuscadas se o presente é o silêncio de uma ausência? O que significa esta nova mensagem?
Busca um papel em branco para rabiscar suas inquietações, mas afiada a folha sangra e a mulher compreende que só conseguiu sentir os espinhos quando as pétalas desfolharam o que poderia ter sido.

O texto é apenas um retalho de uma colcha colorida. Recebi um e-mail de uma leitora em 28 de agosto de 2002, perguntando se no mundo moderno, com as mulheres independentes, ainda haveria espaço para uma dona Rosita (personagem de Garcia Lorca). A crônica é apenas uma perspectiva do que existe em cada um de nós. Todos precisamos esconder algumas verdades, viver com a ilusão de alguns sentimentos ou formas. Tentamos interpretar as palavras de acordo com nossas carências e quando somos “surpreendidos”, observamos com dor o que não quisemos ler na expressão do outro.
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 24/06/2005


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