TRAGÉDIAS CONTEMPORÂNEAS
“Somos um sinal, sem interpretação. Somos sem dor e perdemos quase A fala, no estrangeiro.” Hölderlin Eurípides, autor de “As troianas”, escrita em 415 A.C., manifestou sua aversão à guerra e à postura imperialista dos gregos, contudo, sua manifestação pacifista ficou circunscrita ao argumento do roteiro. A peça pode ser considerada uma ilustração dos horrores que esperam os vencidos na guerra, porém, a platéia que aplaudia continuava empenhada nas inúmeras batalhas pelo poder. O teatro era a ficção que envolvia o público, enquanto a realidade explodia longe dos palcos com atores menos preparados. As emoções encenadas se dispersavam no entretenimento da platéia, enquanto prisioneiros das guerras assumiam suas perdas e sentimentos distante da percepção dos demais. Hécuba chora a morte de Páris e Heitor no campo onde estão confinadas as cativas troianas, seu presente sangra os últimos momentos. A mulher se desespera, enquanto o coro de troianas narra a morte dos guerreiros e de seus filhos. A guerra terminou. Tróia sucumbiu ao poder grego, porém a luta apenas inicia para aquela que respira a morte de seus filhos e aguarda o provável destino delimitado pelos responsáveis por seu luto. A tragédia grega somente introduz o coro atual de mulheres iraquianas que sobreviveram às batalhas para prestarem as últimas homenagens aos seus mortos, cerrarem seus olhos na libertação dos últimos suspiros, talvez já fecundadas pelo acaso de um estupro. Palavras desencontradas desmontam nossos construídos blocos. Somos desafiados por afirmações enfáticas como “temos de destruir o país para libertar o que resta do povo”. As palavras são alvos de interpretações diversas. Será que algum significado de liberdade pode traduzir o extermínio do povo? Será que podemos compreender as imagens de homens entregues à barbárie como algum sinal de redenção? Eis a liberdade: o caos, a degradação... Assassinatos sem julgamentos, saques, homens que exploram as misérias humanas na impossibilidade da civilização, crianças amedrontadas que caminham no horizonte da barbárie. O caos instaurado na ausência de vínculos, no poder diluído e manchado dos conquistadores que não se sentem comprometidos com o sentimento do povo subjugado. A população deixa-se consumir na poderosa arma de fragmentação de desesperança. Em ruínas, tentam remontar os blocos de suas reminiscências. O presente é o limiar de suas expectativas, ruínas e mortes alicerçam o que há de vir. Reconstruir o futuro presos ao ressentimento, à dor e ao desespero. Assassinatos, saques, caos... Alguns ainda tentam se libertar para procurar seus mortos, chorar as lágrimas do que resta das mutilações. Libertos e condenados à barbárie, sustentam os olhares firmes e tristes. O que passará por seus pensamentos? Quais as imagens que certamente retornarão em surtos de lucidez e acompanharão suas memórias? Aprendemos a lição? Imagens mostram sorrisos, confraternizações... Homens libertados de um poder opressor, saqueando o que resta, e crianças descarnadas, recebendo água e farinha dos conquistadores benevolentes... Aplausos encerram o ato do espetáculo planejado. O que resta para um ator em cena destituído de personagem? Novas imagens mostram filas de homens famintos, descalços e maltrapilhos prestando homenagens aos soldados bem nutridos, autoridades risonhas, proferindo discursos inflamados, relatando seus atos benevolentes... O que resta para um homem quando sua dignidade está sob a emoção do presente extermínio? Quando não há mais o que perder? Andrômaca não pôde salvar seu filho com Heitor. Sobrevivente, ficou condenada a se entregar aos assassinos de seus entes queridos e sufocar o desespero de uma vida inteira. Melhores consciências julgaram conveniente lançar o menino das muralhas de Tróia para que o corpo estilhaçado não pudesse costurar os remendos de uma vingança. Quantas crianças são lançadas das muralhas da insanidade para que não possam no futuro concretizar sua infância? As imagens fragmentadas que permanecerão em suas consciências e determinarão alguns desatinos. Os retratos de um inconsciente ferido que não pode ser curado com palavras talvez busque ações expressivas. Aprendemos a lição? O medo nos penetra e estrutura para novas imagens. Os homens marcham poderosos com a representação da vitória, destroem o que ofusca o brilho da conquista. Os argumentos apresentados, costurados com as imagens pertinentes, aniquilam a percepção dos mais sensíveis. Os vencedores encantados dispensam mensagens entusiásticas para seus mortos, declamam os números de prisioneiros da liberdade e dos soldados inimigos abatidos que se libertaram dos corpos terrenos para se salvarem nos reinos distantes de suas crenças. Aprendemos a lição? Mas as palavras permanecem nas profundidades de cada um. O que não nos foi contado serve como uma realização da herança pesada que carregamos. O ocidente invade o mundo e corrompe histórias com o império do conceito maniqueísta do bem e do mal. Raízes eivadas de contradições. Florescemos os frutos de nossas ambigüidades e nos absolvemos com justificativas semelhantes às fúteis disputas dos deuses mitológicos que fundamentam as lendárias guerras. A vaidade das deusas gregas desencadeou no mundo o extermínio de Tróia e inspirou outros arquétipos de homens, semi-deuses e deuses que rasgam a lucidez em suas odisséias mitológicas. O homem se sente poderoso ao assumir o papel da divindade com as características humanas e inocente por ser estimulado pela natureza divina da discórdia. Eurípides apenas traduziu em palavras a teatralização da loucura humana, dos inúmeros prisioneiros que se perdem em campos estéreis e a tragédia de forma universal e contemporânea. As mulheres, sobreviventes de Tróia, são as mesmas que permanecem refugiadas no abandono, no medo e na impotência. As crianças são mutiladas de seus corpos e fantasias, são tragadas por explosões de ódio e força, aprendem a viver a morte e a amadurecer a vida dócil e submissa aos desmandos dos poderosos. Mas as imagens que romperam drasticamente suas vidas retornarão e desfiarão as falsas amarras que prendem o homem desvanecido de sua história em uma imposta civilização. Aprendemos a lição? Olhares entristecidos são os verdadeiros retratos, marcarão a história e no futuro ilustrarão o que fomos privados de compreender. As crianças cicatrizarão as marcas das operações libertadoras que as privaram do processo contínuo de afetividade e segurança. Aprendemos a lição? O coro de iraquianas tenta narrar a cena, explicar, no silêncio imposto sob a mira de jovens soldados amedrontados, a dor do desespero e da falta de perspectiva. Escondem os ventres mutilados sob as vestes escuras, enquanto tentam consolar o que restou dos futuros que lançaram no mundo. Mas tal realidade é apenas uma imagem breve entre tantas editadas Os discursos invadem nossos lares, nossa rotina e eis que, de repente, acordo assustada com o encantamento de alguns líderes. Acompanho o olhar de uma criança destituída da metade dos membros, o desespero de um médico cansado e tento em vão compreender as últimas notícias que invadem minha privacidade. As imagens continuam a mostrar crianças sem os braços, sem as pernas, entregues a leitos de hospitais saqueados. Os olhares infantis assumiram posturas firmes como se complementassem os movimentos dos quais seus corpos foram privados e assumissem a seriedade dos pais desaparecidos. O futuro cicatrizará nas feridas expostas que observamos nas imagens áridas projetadas. Perdemos a compreensão para distinguir a realidade da ficção. Somos platéia a aplaudir uma tragédia encenada? Ou somos parte desse elenco? Distante do Olimpo e dos deuses que repousam na literatura, os homens assumem suas divindades, enlouquecem bandos e arrebanham batalhões, engrandecidos na autoridade e no poderio que ostentam suas armas e perversões. A tragédia é o exercício de estar vivo. A luta do bem contra o mal é uma trama sem fim. A vaidade do libertador deverá ser renovada a cada geração. Os ressentimentos deverão ser estancados nos tempos futuros como o foram em toda a história da humanidade. Sempre existirão vencedores e vencidos, guerreiros mortos e crianças marcadas com a mutilação de uma guerra para a continuidade do próximo ato. Aprendemos a lição? As troianas tentam em vão incendiar suas lembranças, mas o fogo é impotente diante de ódios tão impregnados e fortes. Todos somos reféns dos poderosos argumentos e estamos amontoados, atravessados de notícias, nos grilhões da indiferença e da falta de humanidade. Como as lendárias troianas, os afegãos, os iraquianos, permanecemos aguardando que os responsáveis por nosso luto delimitem nosso destino no refúgio da indignação e impotência.
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 24/06/2005
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