SAN ROCCO
Recebo uma mensagem eletrônica, sugerindo que o assunto pode ser do meu interesse. Entro no endereço virtual como uma pioneira, como o próprio nome sugere, e navego na história de Roque Rotundo, italiano que chegou ao Brasil no final do século XIX; estudou; trabalhou no comércio; casou e constituiu sua família; montou diversos negócios, entre eles uma exportadora de café; tornou-se representante da colônia italiana...
Sua vida é narrada com destaque. É um dos pioneiros da colonização italiana no sul de Minas Gerais. A vida do imigrante marcou algumas gerações. Morreu na década de 40, deixando seis filhos, cinco netos, uma praça com seu nome e um solar que mais tarde seria a Câmara Municipal de Varginha. Sua história é ilustrada com uma biografia de fotografias: as casas comerciais, o solar dos Rotundos, sua família em sociedade, a casa em Sasso di Castalda, algumas pedras medievais... Apreendo cada palavra, cada imagem, com avidez. O bisavô italiano, que conhecia apenas como um “santo homem”, está escrito como um homem valoroso que construiu uma vida significativa num país distante. Com a prosperidade de Roque Rotundo, outros irmãos foram atraídos a cruzar o oceano e investir no mundo novo. Alguns retornaram aos portos originais, outros escreveram novos capítulos... Sasso di Castalda... A cidade perto de Nápoles, anunciada como minha origem italiana, que imaginei destruída por algum terremoto, ganha nome e localização precisa. Posso desenhar sua geografia nos arcos da casa dos meus longínquos antepassados na fotografia antiga. O DNA está registrado no mundo virtual. Decifrei o conteúdo de cada construção medieval que alicerça algumas recordações familiares e pude identificar meu sangue na história do pioneiro italiano que chegou ao Brasil em 1888. Desejei viajar... Sentir os anos perfurando as possibilidades do meu nascimento, as pedras enraizando meus pés nos solos medievais, o vento afastando o horizonte nas rotas antigas... Entrei no site oficial de Sasso di Castalda, cidade medieval, com aproximadamente mil habitantes. Espiei em cada janela de paisagem e senti vertigem a mil metros de altitude. Imaginei o interior das igrejas, bebi a água da fonte e desfilei na procissão de San Rocco, padroeiro da cidade... Entendi o porquê de ser cercada por tantos Roques: bisavô, tio-avô, alguns primos distantes, pai, irmão... Roques que consegui identificar entre os fiéis que carregavam o santo secular... Roques que ainda insistem em desafiar as fronteiras para imortalizar suas crenças... Roques de novas metáforas... Caminhei pelas antigas ruas de Sasso di Castalda. Senti os passos do menino de treze anos me seguindo... Tentei alcança-lo, mas ele caminhava apressado, tinha os olhos de despedida... Naquele dia embarcaria para um país distante e deixaria a família e a pequena cidade... Aos treze anos, sua vida assumiria um novo continente possível de realização. Desperto entre o encantamento e a melancolia. Percebo a agonia do menino, sua inquietação... Distante, tento ampara-lo... Meus esforços escurecem as sombras distantes... Sinto que tropeçamos em pedras desconhecidas, apesar de estarmos inatingíveis... “Um santo homem!” Lembro de minha avó e de sua adoração pelo pai. Sempre que perguntei sobre o bisnonno, ela respondia: “um santo homem!”. Seu olhar, encravado nas pedras da infância, não conseguia narrar a trajetória do italiano distante dos seus olhos mareados de lembranças, longe dos horizontes de subjetividade do amor incondicional da filha caçula. Telefono para ela e conto todo o percurso que caminhei, a grande subida às pedras definitivas para poder mensurar as ancoras dos portos de partidas. Descrevo todas as fotos que percorri em Minas Gerais e em Sasso di Castalda... Ela se emociona. Seus pais e irmãos já faleceram e, de repente, a neta liga para ressuscitar a família com a lembrança da fotografia em frente ao pavilhão italiano. Minha avó conta a história de seus avôs na Itália, dos tios que chegaram ao Brasil mais tarde, dos outros que morreram durante a 1ª Guerra... “Toda tarde, nonno Micheli apoiava-se na janela para ouvir os sinos de San Rocco chamarem para a missa...” Percebo que ela não conhece todos os personagens, apesar da riqueza de sua narrativa. Nunca foi a Itália, seus avós não vieram ao Brasil... “Por que tão novo?” Minha interrogação é fragmentada. Quero descobrir o porquê de sua vinda tão precoce. O menino de treze anos atravessa o oceano sozinho para aportar numa terra desconhecida e amadurece no lendário Roque Rotundo, padroeiro de tantas vidas. Treze anos... Ancora un bambino! Minha avó responde com um leve riso. “Veio para ser padre. Seu tio, também Roque Rotundo, já estava no Brasil e era pároco de uma igreja em homenagem ao São Roque... Era tradição na família formar pelo menos um padre em cada geração...” O resto da história está na narração virtual que correu em meu corpo. O jovem seminarista se apaixonou pela filha do dono da casa comercial onde trabalhava, o tio padre abençoou o casal enamorado e mandou buscar outro parente na Itália para continuar a sua missão, o imigrante trabalhou duro e se tornou num digno representante do seu povo na cidade do interior do Brasil, num paradigma de luta e coragem... O verdadeiro legado de um homem é o que sobrevive ao tempo, inspira e amadurece as realizações dos descendentes. Pioneiros... Desbravei as origens esquecidas com as cores da história e da religiosidade. Deito o olhar sobre a realidade presente, os contornos da cidade grande, a dispersão das tradições, o anonimato das pessoas na rua, a falta de fé... San Rocco... Despeço-me da procissão e avisto, ao longe, a iluminação das velas pelas ruelas de Sasso di Castalda homenageando os santos Roques...
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 24/06/2005
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