LUZES EMBARAÇADAS
A mulher desliza o corpo suavemente no lençol. Acorda com os olhos voltados para a janela, sente a claridade ofuscar seus primeiros pensamentos. Deita de barriga para cima, pensa em toda sua programação diária, nas constantes pendências, nas difíceis alternativas... Focaliza um ponto no teto e tenta não dispersar. A lâmpada pendurada chama sua atenção. Os fios coloridos emaranhados, alguns partidos, sustentam a iluminação de suas noites. Por instantes, a mulher é cortada por um grande estremecimento. Olha em volta: o armário, a cama, a estante, os quadros embalados no canto... Tudo deixado na última mudança nos lugares possíveis. Onde estariam as luminárias? A mulher se esforça para convergir os retalhos de lembranças, mas não consegue perder a lâmpada emaranhada em fios, não consegue se recordar dos lustres que indiretamente participaram das luzes dos seus interiores. O provisório! Durante anos peregrinou por cidades e residências que não lhe pertenceram. Levava alguma mobília, comprava alguns móveis, doava o que não lhe servia, mas não pregou pregos na parede, não decorou a fria iluminação com falsas cores. O provisório! Envelhecia provisoriamente sob um emaranhado de fios coloridos, vivia precariamente sob embaraçadas expectativas... A angústia penetrou em sua alma, afligindo algumas cicatrizes. A lâmpada provisoriamente pendurada concebia a interiorização de um precário sentimento: até quando? O teto que abrigava sua intimidade era um teto comum, uma lâmpada ordinária encontrada em qualquer prateleira. Não havia pessoalidade nas paredes brancas que a protegiam do mundo... Como poderia imaginar que uma clara manhã de verão fosse iluminar o breu de suas omissões? Os primeiros raios, um despertar cotidiano e sua aventura no mundo percebida e analisada como um bocal exposto sem verbalização ou traços de identificação. A mulher se levanta e esconde a atenção no filtro de café. O pó negro enterra sua intimidade, a água fervendo lhe causa inquietação... Seu olhar se liberta e, com receio, rastreia todos os utensílios, os detalhes das bordas dos pratos, a diversidade das xícaras, os talheres remontados... O cheiro do café aquece algumas lembranças. Pode ver algumas feições nas sombras, a menina correndo atrasada, a mulher sonolenta deslizando nas sedas do encantamento... Ouve alguns comentários matinais e, com o olhar distante, murmura fragmentadas palavras... Sente uma tímida vontade de sorrir, um leve anseio de chorar... Desenha o riso com o brilho da lágrima abandonada. Lembra-se do lustre de palhacinhos de sua infância, das sombras coloridas preenchendo as paredes, da forma cilíndrica e espalhafatosa; dos spots de sua adolescência, dos tantos focos que empreendeu; da tonalidade ocre do primeiro casamento, da rotina amorosa, das tantas rupturas, da continuidade... Enfim, percebe sua vida sob as luzes de alguns momentos. Tudo passageiro! Os trajetos marcados pelas iluminações provisionadas, pelas tantas convicções do destino enquanto, nos fluxos do acaso, o barco corria... A vida projetava novos focos nas emaranhadas emoções que sustentavam o brilho de uma expectativa, a luz de um amanhã... Deixou o café escorrendo e saiu. Ao fechar a porta, olhou novamente para o teto. Não poderia deixar que o provisório assumisse o significado de precário. Seria insustentável pensar no presente como algo escasso, insuficiente. Pensou em comprar alguma luminária, mas compreendeu que seria apenas uma nova provisão. Era necessário recriar-se, redesenhar a perspectiva nos fios embaraçados que sustentavam seus sentimentos.
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 24/06/2005
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