CORPO DA MÚSICA
31 de março de 2005. Noite de concerto no Teatro Guaíra em Curitiba. A menina caminha entre os espectadores ansiosa. Os primeiros acordes da infância serão desvelados ao vivo. Sua mãe embalava o sonho dos seus primeiros meses com “Jesus, Alegria dos Homens” e “Ária da 4ª Corda do Suíte nº 3”, por João Carlos Martins. O cd “Natal com Bach” permaneceu entre os seus guardados como a abstração possível num mundo real.
O mágico som das teclas do piano desperta as emoções com leveza e acaricia o corpo da inquietação com o crescente despertar para novos acordes. Amadurecer, no corpo da música, a leitura transcendente dos sentimentos. Os portões finalmente são abertos e a menina se apoia na mureta do segundo balcão com uma infinidade de instrumentos em sua frente. Parecem miniaturas de uma caixa de música no palco de suas primeiras percepções. Ainda sob o encantamento do brilho de uma noite de concerto, a menina está surpresa com as cadeiras vazias no palco, o cravo, os tímpanos, o público que lota o teatro. Murmurinho na platéia. A vida do pianista é revelada no seu retorno como maestro. “A paixão segundo Martins”. A narrativa de uma vida de superação e de amor. A verdadeira entrega rompendo os limites da possibilidade... A menina acompanha a conversa dos adultos com olhos atentos e questiona os porquês que debilitaram as mãos do pianista. Aplausos. Os músicos da Bachiana Chamber Orchestra entram no palco e afinam os instrumentos. O maestro João Carlos Martins é calorosamente recebido. O concerto de Brandenburgo nº 3 é a primeira obra apresentada. Os movimentos apaixonados do maestro são reflexos musculares da emoção com que dedilhava o piano. A música como ressurreição, como sonho, como realidade... O solo de violino e oboé coroa com magia a apresentação no “Concerto para oboé e violino em Dó Menor”. Cordas e sopro se conjugam num momento de rara sensibilidade. O maestro desenha com as mãos os sons esculturais que dominam os instantes e consagram a perenidade da arte. Intervalo. A menina está encantada. Os sons de sua infância ganham vida na apresentação da orquestra regida por João Carlos Martins. Somos sombras, reflexos, ecos de sentimentos na acústica dos anfiteatros do pensamento. O sonho projetado na realidade e nos percebemos no limiar de nossas ações e percepções... A noite é consagrada com a entrega do maestro João Carlos Martins ao piano. Ele toca duas pequenas peças de Bach e o hino nacional. Suas mãos lesionadas marcam a apoteose da noite com sua face traçada pela dor e pelo esforço. A menina observa a face umedecida de sua mãe ao lado e compreende que existem lágrimas que não são alegria ou tristeza. São gritos da alma marcados no rosto, são silêncios que realimentam uma virginal emoção. Aplausos. A menina percebe em seu riso o sal da beleza, a sensibilidade fruir e revelar a plenitude da vida.
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 23/06/2005
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