Colcha de Retalhos

"O homem é um deus quando sonha e não passa de um mendigo quando pensa." Holderlin

Textos

PASSOS INAUGURAIS DA INTOLERÂNCIA
“Sai daqui, negra suja!”
Não foi na exaltação de um campo de futebol ou numa briga de botequim que o menino de sete anos xingou a pequena de três que insistia em segui-lo. Foi no pátio do prédio na rotina de uma manhã de recreação entre vizinhos. Ele gritou e permaneceu com os punhos fechados aguardando que a pequena se aproximasse para esmurrá-la.
Não foi possível definir o que gerou o conflito: se a posse da bola colorida da menina ou o perfil irritadiço do menino e sua dificuldade em conviver com os demais. Mas era evidente que a ofensa extrapolou os limites das brincadeiras e dos desentendimentos das crianças.
A menina se equilibrou nos passos sem definir o que significavam as palavras. Compreendeu apenas que o “coleguinha” mais velho estava bravo e que lhe oferecia algum perigo. Apertou os olhinhos e quase chorou. O menino alicerçou seu primeiro pilar de intolerância com a postura arrogante. Seguro repetiu a ofensa:
“Negra suja! Negra suja!”
A mãe da ofendida correu para protegê-la. Desejava repreender o menino, apagar as palavras, restaurar a paz fazendo justiça com as próprias mãos... Encarou o menino com firmeza, mas diante do petulante olhar do infante, pegou a pequena no colo e a abraçou com força. Sentiu a dor da ferida aberta em sua alma anestesiar suas palavras.
O menino manteve a feição raivosa amparada na indiferença de sua mãe que continuou sentada com o olhar cotidiano. Ela não se levantou sequer para conter o filho, deixou que a infância justificasse as injúrias e os danos... Eram todos tão pequenos! Crianças devem resolver as diferenças entre si sem a intervenção dos adultos...
As mães trocaram um forte olhar em silêncio. As exclamações do menino ecoavam na cabeça de ambas de forma diferente. Para a genitora do agressor, era apenas uma briga de crianças com palavras sem grandes conseqüências, para a mãe da menina era o alerta para o preconceito acalentado nos lares desde os primeiros anos e que amadureceria certamente com a cicatriz do entendimento de sua filha. Não havia dúvidas da origem dos sentimentos do menino. As ações e omissões estavam estampadas na agressividade do pequeno e na face apática e distante de sua mãe.
O menino reproduzia o que ouvia entre quatro paredes. Eram ecos... O encaixe da realidade de intolerância com a inimputabilidade dos racistas e injuriadores.
Como acabou a história?
Os pequenos cresceram com as percepções inaugurais. A menina, hoje com nove anos, assume com orgulho a cor de sua pele, soube conjugar as convergências na cor branca de sua mãe e na negra de seu pai. O menino? Certamente, com o preconceito impune dos primeiros anos, está engajado em algum grupo de adolescentes racistas e aproveita o silêncio de muitos e a indiferença dos pais para manifestar a sua intolerância como prova do próprio desamor. A mãe ofendida aproveitou a vivência para escrever uma crônica e alertar os pais para as primeiras manifestações de seus filhos e para uma reflexão aprofundada dos discursos cotidianos.
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 23/06/2005


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