QUEIMA DE ARQUIVO
Sabor de lágrima amanhecida, horizonte idealizado, salgado riso anoitecido no outro... Palavras, imagens... A inesquecível memória corporal traindo o tempo, armadilha de horas e ponteiros que aprisiona o futuro algemado a um presente refém de memórias... Todos os arquivos deitados numa fogueira. É imperioso esquecer para ir além da sobrevida, chamas ardentes, cinzas dispersas... A vida reescrita sobre as sombras do lume que outrora alimentava a alma. Rasuras de sonhos... A ficção domina a realidade tardia em roteiros nostálgicos. Percurso da solidão traçado na busca dos personagens desencontrados, narrativa reticente que deixa à margem a última fala. Fortes cores de desejo e ruptura estendem as lembranças, corrompem o corpo com as emoções tatuadas, contraem o ventre com o prazer entranhado no instante de uma imortalidade. Um arrepio, um gozo, um corpo conjugado em nós, preenchido de expectativas, sob a iluminação trêmula de uma vela que recria a performance em renovadas sombras. Um perfume, um acorde, um olhar... Momentos que não serão percebidos com a mesma intensidade mesmo quando a lembrança for apenas uma cicatriz que insiste em desfolhar e sangrar em ciclos. A paixão é retalhada na cronologia do encantamento do primeiro olhar... São tantos os desfechos que a narrativa se perde no fulminante desencontro ou nas tantas feridas que se cruzam diariamente sem conseguir transpor as esquinas seguras dos falsos conhecimentos. Histórias que transcendem as estações do amor, fragmentam o que sobreviveu e acendem os corpos em reincidentes ardências. Os sonhos permanecem escondidos nas primeiras palavras, encontram, nas confissões dos amantes, alimentos para a permanência entranhada do que foi partido no tempo. Desejos que não se consomem, revoltam-se em noites de insônia, calam-se na serenidade de um possível reencontro... Gravado no corpo o reconhecimento do outro, já não é a mesma pele que se acaricia e fere; costurada a alma com as linhas do medo, já não é o mesmo significado que define a felicidade... Sente-se a proximidade da mortalidade do eu, dos nós, dos outros... Lançados à fogueira, os sentimentos são cinzas de lembranças que insistem em sombrear o abandono e a eterna busca enquanto corpos invertidos insistem em representar obstinadas ilusões no espelho do outro.
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 23/06/2005
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