BINGO! crônica de uma crise esquecida
Crônica de uma crise esquecida Surpreendo-me com as notícias da primeira página do jornal. A foto do bispo ilustra a matéria sobre seu afastamento da representação da bancada evangélica no Congresso pelo suposto envolvimento com um ex-assessor do governo. Ao lado, a figura solitária do representante do Governo, sobreposta a sua equipe, ilustra a manchete do jantar organizado pelo alto escalão do governo para dar apoio ao assessorado e dispor sobre estratégias de dispersão da crise. Decisões adotadas no calor da repercussão de uma grave denúncia... Perco-me nas notícias sem encontrar o elo de convergência. O assessor exonerado é o mesmo, os atos praticados estão publicados nos meios de grande circulação e duas pessoas públicas, representantes dos poderes religiosos e políticos, são tratadas de forma distintas por seus superiores e pela opinião pública. Sem me aprofundar muito no fato, percebo o julgamento sumário a que o homem de Deus foi submetido: seu envolvimento é motivo suficiente para estilhaçar a representação divina. O afastamento serve como exemplo de ética e disciplina dos corpos religiosos. Um aviso às demais ovelhas do rebanho... Fora do jogo por desatenção! Enquanto o ministro é aconselhado a fingir que não foi com ele e permanecer no silêncio dos poderosos, sem justificativas ou discursos emocionados, articulando as alianças possíveis para o esquecimento. Uma postura de força de um pastor experiente... Cartela nova... O jogo continua! As cúpulas se reúnem em julgamentos secretos enquanto os leitores ficam reféns das notícias veiculadas e do grande sentimento de ignorância e de impotência. Desisto de entender... Giro a roleta... Sou sorteada com o prazer de um bom livro. Começo a ler “Mulher de pedra” do escritor paquistanês Tariq Ali e sou irremediavelmente conquistada logo na primeira frase “Os mitos são sempre mais poderosos que a verdade nas histórias das famílias.” A ficção preenche de cores o anoitecer de um dia útil. O declínio do Império Otomano e as confissões das mulheres aos pés da estátua, seus amores e amarguras, esperanças e desilusões, são costurados com clareza. A narrativa é envolvente... Viajo nos capítulos, criando uma nova perspectiva na analogia entre a decadência de um patriarca e de um império. Giro a roleta... Sonho com a sorte de novos números. Marco com feijões as palavras libertadas nos giros aleatórios do globo na tentativa de criar fortes raízes. Fecho o livro no amanhecer de um romance concluído, dividida entre a vasta experiência literária e o desconhecimento real. As sombras de meus mitos ganham novos formatos, esculpidos nos terrenos rochosos da governabilidade... Busco uma estátua que possa ouvir minha indignação, libertar-me da angústia do desconhecimento, mas... As palavras truncadas das manchetes do jornal insistem em reproduzir o que não entendo: conversas telefônicas, campanhas eleitorais, acordos partidários, reações do “mercado”... Bingo! A literatura preenche as lacunas da realidade: “Os mitos são sempre mais poderosos que a verdade na história...”
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 23/06/2005
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