INTIMIDADE EM EXTINÇÃO
Na livraria Letras & Expressões do Leblon, corro contra o tempo para encerrar o texto e enviá-lo pela internet. Sentados ao redor estão outros navegadores dos mares virtuais. Seguimos o rumo, silenciosos, norteados por mensagens de nossos pontos de partida. Eis que um celular toca. “Não, pode falar... Ele não consegue entender que acabou... Sim, acabou mesmo... Ah! Foi só uma transa... A carne é fraca... Não, já estou em outra... Não tenho coragem de contar... E se... Tenho medo de magoá-lo... Foi só uma recaída... Só uma transa.” As falas da mulher, intercaladas com silêncios, explicitavam todo o ocorrido: um ex-namorado ainda apaixonado e uma mulher, sujeita às fraquezas da carne. Mas a conversa seguia redundante, sem qualquer discrição, e desviava a atenção. Queria interferir e palpitar, contudo minha opinião era irrelevante. Sequer conhecia os personagens. E se fosse tudo mentira! Mesmo percebendo a banalidade do assunto, as justificadas recaídas da interlocutora e a suposta paixão do personagem impediam a continuidade do meu texto. Interrompi o diálogo. A mulher me olhou assustada. Com a voz pausada, falei que percebera, em poucas palavras, como era interessante a sua vida, mas que precisava de um pouco de silêncio para me concentrar e encerrar o texto. O constrangimento nos dominou. Assustou-me a sinceridade de minhas palavras. Não sou de rompantes, mas agi em legítima defesa da minha intimidade. Queria me senti resguardada da vida alheia e dos dilemas das relações amorosas (ou quase). A mulher desculpou-se, disfarçou e encerrou a ligação. Infelizmente, o tempo do meu cartão virtual havia se esgotado nas recaídas e justificativas da mulher. Corta a cena. Entro no Café em Curitiba para acabar a leitura de alguns documentos. Sento-me num canto reservado, peço um café e tento me concentrar e decifrar os termos jurídicos. Ao lado, um senhor fala no celular: “Você sabe o que fez... Quem me disse estava lá... Você sabe quem... O que fez... quem esteve... Você sabe... Estava lá...” Novamente minha atenção é seqüestrada. O que será que alguém fez em algum lugar? Quem estava lá? Meus pensamentos giram ao redor do tom indignado do senhor. Tento compreender a história no forte gestual do homem. Ele desliga o telefone abruptamente. “Cretina”. Murmura por entre os dentes. O celular toca insistentemente. O senhor aperta as mãos e observa o aparelho em cima da mesa. A raiva escrita em suas feições desafia quem chama. Novos toques. Frustração e desistência. O senhor se acalma e sai silenciosamente. Quem fez o quê e onde? Disperso-me nos horizontes possíveis. Sempre há alguém... Distante, sou embalada por uma leve música. Quando retorno aos documentos, percebo que o suave som é a campainha do meu celular escondido na bolsa. Olho ao redor e percebo que minha intimidade corre perigo de extinção. Disfarço... Não atendo a ligação, esperando que, em algum lugar, alguém deixe um recado para resgatar a clandestinidade.
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 22/06/2005
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