Colcha de Retalhos

"O homem é um deus quando sonha e não passa de um mendigo quando pensa." Holderlin

Textos

Eis o leitor!

O leitor... A certeza de sua existência motivava a construção de novos personagens e enredos, contudo, o ser imaginário estava distante – sem sexo, nome, preferências... Permanecia apenas como uma possibilidade.
Tentei me aproximar em diversas ocasiões. Questionei-o sobre minhas inquietações, desafiei-o a me contrariar, cheguei até a tentar seduzi-lo, mas ele permanecia apenas uma representação. Nunca deixou que a relação simbólica se desfizesse com um mal entendido.
Quando menos esperei, no lançamento do livro Alfinetes de lapela, entre encontros com amigos, taças de vinhos, breves sinopses do texto, autógrafos, livros vendidos, fui abordada no fim da noite por um rapaz que tocou levemente em meu braço e afirmou com ênfase: “O rapazinho amadureceu”.
Olhei para ele e sorri sem entender o que exatamente queria dizer, pensei ainda que tal afirmação fosse efeito do vinho. Lembrei de ter autografado seu livro logo no início da noite e do seu nome forte e diferente, mas... Fiz um breve movimento com a cabeça e continuei a me despedir de alguns convidados.
Ele repetiu insistente: “O rapazinho amadureceu, ficou evidente no último capítulo.”
Tal afirmação me deixou perplexa.
- Você leu o último capítulo?
- O livro todo. Acho que Mateus amadureceu. Senti que no final ele já conseguia lidar melhor com as autoridades... Adorei o fato do chefe usar a cromoterapia na escolha das gravatas... Mas, você acha que um chefe assumiria que acredita em cromoterapia para os subordinados? E o filho do capitão, ele tinha...?
Suas perguntas me deixavam confusa. Ele comentou sobre todos os personagens, os truques de retórica das autoridades e os alfinetes de lapela, inclusive sobre as fantasias do protagonista e sua análise de tais acessórios, e concluiu que Mateus havia amadurecido.
“Nossa! O leitor existe em carne e osso.” Pensei assustada. Senti o receio próprio diante dos encontros idealizados.
Depois de algumas palavras, peguei-o pelo braço. Queria ter a certeza de que ele não era fruto da força dionisíaca que nos impulsiona nos momentos de grande exaltação.
Apresentei-o a alguns amigos, sempre me apropriando do fato de ter o livro completamente lido por um homem, até então desconhecido, nas poucas horas de uma noite de lançamento.
- Até hoje pensei no leitor como uma abstração – ele era a possibilidade de ser lida, o interlocutor imaginário, a sombra de algum pensamento... Mas ele existe! Leu-me esta noite, em meio ao barulho e à agitação...
Alguns fizeram pequenos gracejos, outros pediram para que ele organizasse um curso de leitura dinâmica, mas nada desfazia a magia do encontro com o leitor.
O leitor... Talvez minha alma gêmea literária, talvez uma simples libertação de meu espelho. Sei lá! O fato é que ele existia e estava ali ao alcance dos meus olhos e pensamentos aflitos. Sua existência me inquietava... O que será que ele faz? Será que ele leva uma vida normal como qualquer um? Escova os dentes todas as manhãs?
Quem sabe ele não poderia ser o próximo personagem?
Antes que pudesse contextualizá-lo em minhas viagens literárias, recebi um e-mail com textos de sua autoria em anexo e descobri que ele era um escritor de rara sensibilidade. Tornamo-nos cúmplices, pude trocar de papéis e lê-lo com intensidade...
Adonai, eis o leitor! Por ironia, seu nome impronunciável representa entre os hebreus um dos nomes da divindade. A natureza divina de quem interpreta as criações costuradas de vivências e reflexões e com rara percepção abre um novo olhar para a realização.
E você leitor, continuará sendo um escritor imaginário? Ou presenteará o mundo com suas composições?
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 22/06/2005


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