CÁRCERE SUBCONSCIENTE
Acordou com a sensação de mudança. Não seria possível suportar mais um dia com a mesma presença em si de tempos anteriores. Algo a prendia ao passado como um horizonte tardio marcado de futuros. Independente, relativamente realizada, nossa personagem oscilava entre conhecer o mundo e explorar as vivências de uma mulher próxima dos trinta e cinco anos. Demorou a perceber que ainda estava presa aos ideais da tenra idade. As amarras estavam bem distantes dos olhos e agrilhoavam sua alma em expectativas vencidas. Nos últimos meses manteve uma relação sem grandes compromissos, entregue ao desfrute do presente e às circunstâncias do outro: um homem separado, com filhos adolescentes, e alguns “pós-conceitos”. Sabia do risco de tal envolvimento e da ausência de projetos, mas desistira de prever o amanhã, atropelada pela sucessão de dias, inconstâncias e anseios... Deixava-se à deriva com a amplitude de um conhecimento mais universal e desprendido do mundo contemporâneo. Mas... Acordou com a sensação de mudança e não conseguia abandonar as seqüelas da impressão impregnada na manhã de domingo. Abriu os armários e logo percebeu o mofo de alguns guardados. As peças do enxoval, bordadas aos dezoito anos, desbotavam com o tempo, perdidas entre os tantos esquecimentos. Por que não casou? Ele e ela? Por que não fomos nós? O que causou o desencanto? As lembranças despertaram no seu mareado presente e traziam à tona as âncoras que se perderam nas interrupções não compreendidas. Abriu os embrulhos com cuidado, observou as marcas do tempo nas amareladas rendas e a escolha adolescente das cores e padrões. Todas as peças remontavam uma história distante, não acalentavam seus anseios ou agasalhavam suas escolhas. Não havia peça que montasse o quebra-cabeça do seu presente ou a representasse nas tantas fases. Não havia encaixe... Ainda assim o enxoval estava guardado como um tesouro que mumificava parte do que já havia sido. Separou todos os embrulhos com a paciência de quem desata nós, perfumou as peças com a fragrância atual e as doou a uma instituição de caridade. Acho que se lembrou da triste personagem de Dona Rosita, de Federico Garcia Lorca, envelhecida e abandonada, costurando a ilusão num enxoval perdido de significado, ou se esqueceu definitivamente da jovem de dezoito anos encantada com o primeiro amor... Talvez tenha se recordado de si e dos possíveis caminhos. Pilar não me confidenciou quais lembranças alicerçaram seu esquecimento, mas o enxoval ganhou um porto seguro na necessidade dos que não tiveram a oportunidade de içar velas rumo a novos horizontes. A sensação de mudança... Com todas as transformações, um verbo permanece com o mesmo significado: viver é não perder o desejo e a coragem para começar novos enxovais. Texto inspirado num relato cotidiano.
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 22/06/2005
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