O SER NO MUNDO DE DADOS
Dia cinco. As contas de todo mês vencendo e aquela prematura fatura do dia três esquecida. Resta entrar na fila do único banco que recebe seu pagamento após o vencimento e purgar a distração.
Observo as dezenas de pessoas em minha frente e tento em vão adivinhar o tempo. Aliás, penso na perda de tempo, na falta de assunto, até me aventuro a imaginar o que passa no interior de cada um dos enfileirados. “Esquentou, não!” “Acho que irá chover à tardinha...” Os gestos se tornam impacientes: contam dinheiro, balançam a cabeça, dão pequenas voltas no espaço delimitado... Alguns tentam concluir as conversas triviais, outros recontam dinheiro, dobram pequenos papéis, reorganizam os documentos na carteira... “Sempre assim, perco horas na fila...” “Não têm respeito!” A fila não anda. O gerente caminha de um lado para outro e os caixas tentam em vão justificar a demora. “O sistema caiu.” O gerente, pálido, tenta manter a calma. Não o ensinaram a operar sem o sistema. O que fazer com os títulos vincendos? “O sistema caiu. Calma! Já estão verificando... Não posso fazer nada. O sistema caiu.” Uma criança pergunta assustada no meio da multidão: “Quem é Sistema? Será que machucou?” Um quarto de hora... A agência lota. Começam a distribuir senha para a fila na rua. As conversas ficam acaloradas. Falta de dinheiro, contas a pagar, sistemas caídos, multas... Os temas convergem para os vencimentos. Um homem jovem de aparência humilde caminha para o balcão de informações. Com movimentos graves mostra sua insatisfação. Mas todos os atendentes estão ocupados com a queda do sistema. O homem, sentindo-se destratado, esmurra a mesa e grita: “Um roubo! Um roubo! Quem é o responsável?” O gerente tenta tranqüilizá-lo, mas ele continua gritando. A fila é contagiada por sua raiva. As pessoas começam a desabafar suas angústias: “Um verdadeiro roubo! As tarifas são um absurdo...” “Um bando de ladrões... E ainda querem cobrar mais contribuições.” O ambiente se torna tenso. As pessoas, enfileiradas na rua, começam a bater no vidro da agência. Os guardas, apavorados, seguram suas armas. Muitas vozes e manifestações. Um homem afirma ter sido roubado... O sistema caiu... “Somos roubados o tempo inteiro e não temos quem nos defenda.” “Que coragem! Um verdadeiro assalto à mão armada.” O homem grita e caminha em direção a um dos caixas automáticos. “Foi esse aqui! Fiz tudo como manda o envelope. Coloquei o dinheiro, a carta e a foto para minha mãe, mas ela só recebeu o dinheiro. Roubaram minha carta! Quem foi o bandido? Se ainda fosse o dinheiro, mas roubaram a carta e a foto... Ladrões! Devolvam agora!” Os funcionários do banco estavam perdidos. Caiu o sistema, a fila enorme perto do horário de encerramento e ainda aparece um homem falando de um envelope do caixa automático. As pessoas da fila, enfim, encontraram uma distração: “O caixa automático roubou a carta e a foto que ele enviou para mãe.” “Que absurdo! Não respeitam mais as mães. Como privar uma mãe das cartas e fotos dos filhos distantes... Quanta impunidade!” O gerente tenta disfarçar o mal entendido. Sente o desespero de quem se depara com a ignorância e a enorme vontade de rir conseqüente. “Imagina mandar uma carta no envelope de depósito!” “Será que pensa que o dinheiro que a mãe recebe é o mesmo que ele colocou na máquina?” Explica para o homem que os caixas automáticos estão destinados às operações financeiras e não à remessa de correspondência. São apenas máquinas que recebem os títulos e as importâncias respectivas... O homem continua contrariado. “Só porque eu não tenho título...” “Quer dizer que minha carta não era importante?” O gerente tenta esclarecer, mas o homem não compreende. “Como você explica o fato de ela ter recebido o dinheiro certinho?” O sistema retorna. Todos os caixas são abertos para dar vazão a fila e desmobilizar as inúmeras manifestações que se apresentam. O gerente, percebendo não ser mais o centro das atenções, dá o assunto por encerrado: “Qualquer reclamação, ligue para o nosso zero oitocentos.” As pessoas, próximas do atendimento, retornam às conversas triviais. “Ainda tenho de ir ao supermercado...” “Tá tudo os olhos da cara... Um roubo!” O gerente, em seu gabinete, aproveita para incrementar o relatório de contas CC5 e das transferências e aplicações mais significativas do dia, comparando com os dados enviados pelas demais agências espalhadas pelo país. O homem, com aparência humilde e vencida, caminha até o caixa automático. Sozinho, completamente abandonado em seu desconhecimento, suplica a máquina para que lhe devolva ao menos a foto e ameaça. “Se não devolver, conto tudo para o seu zero oitocentos...”
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 19/06/2005
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