ABAIXO DA LINHA DE UM SORRISO
Não há como negar a existência da fome para milhões de brasileiros. Os números estatísticos não nos deixam fechar os olhos para esta realidade, mesmo quando estamos entretidos com a própria sobrevivência nos afazeres rotineiros. Os programas, recentemente implantados pelo governo, buscam a concretização de direitos básicos: não é digno e justo que um homem e sua família sejam privados dos alimentos para sua sobrevivência.
Assisti, com satisfação, ao lançamento da campanha contra a fome. Ainda fascinada pelas palavras e boas intenções e munida com a lucidez das vistas acostumadas aos novos brilhos, pude perceber que os direitos naturais dos desvalidos tão lesados devem ser objetivos primordiais de qualquer representante do povo. Ao contrário do que o pesado ônus imposto para a consciência dos representados nos fez acreditar por tantos anos. Confesso que me senti aliviada da culpa social que tanto tempo me assombrou, só por estar empregada e sustentar minha filha com algumas fantasias infantis. O fato de ter sobrevivido não pode me condenar com o olhar suplicante que desmorona minhas estruturas, com os números que crescem e me aprisionam nos gráficos... Sorri o riso dos vitoriosos quando soube que o candidato de toda minha vida política havia chegado ao poder. Pude relembrar a expectativa nas primeiras eleições diretas, os comícios, nossos sonhos rubros balançando em cada bandeira, a multidão na Candelária, o turbilhão de esperanças e os vazios coloridos... Pensei em como o amadurecimento de minha relação com o mundo propiciara o advento de mudanças para a legítima elaboração dos reais motivos de indignação. Queria diminuir os números de realidades abaixo da linha da decência e da justiça social. Talvez uma grande campanha contra os olhares viciados e as amordaçadas bocas com repercussão internacional... Aguardei a abertura das cortinas dos novos cenários políticos e, ansiosa, imaginei as primeiras falas dos meus idealizados protagonistas. No mundo cênico, as ilusões ganham força, assim, imaginei um espetáculo único, completamente diferente dos que assistira anteriormente. Novas abordagens, iluminações, personagens... Mas... Um mundo de representações. O protagonista pode ter mais carisma, o coro ser mais afinado e rigoroso, os diálogos maquiados com novas palavras e figurinos de protocolos fragmentados... Alguns intérpretes tentam frases improvisadas, outros se perdem nos textos já escritos. Todos tentam traduzir seus novos papéis em velhos textos tão censurados. São novos tempos, novas realidades... Ou são velhas soluções, antigos problemas... O que mudou? As posições? Os discursos e relações são os mesmos, talvez com alguns toques de sentimentalismos e frases de efeito. As histórias dos intérpretes são distintas, mas representam os mesmos personagens com o mesmo afinco e comprometimento. Não seriam ainda truques de retórica, as frases de efeito que nos mobilizam no que mais somos vulneráveis? Sinto-me ainda perdida e, pela primeira vez desde a maioridade política, não consigo me posicionar no mundo, aliás, nem consigo definir a nova situação. O que mudou? As indefinições? Aprendi que todos os sentimentos, ações e reações são transitórios e contextualizados... Devemos viver e conviver com os antagonismos expostos no roteiro. Contudo, diante de tantos atos e enredos, a lição que mais marcou minhas atitudes é nunca deixar de me indignar diante dos espetáculos que nos constrangem. Alguns personagens fazem bravatas, outros perdem a fala... O espectador calado olha o mundo: fome de educação, fome de integridade, fome de expectativa, fome de alegria... Deixo por instante os números dominarem meu pensamento. Analiso a própria estrutura e, com o olhar para o mundo, tento em vão imaginar o que pensam os rostos dos caminhos cotidianos. Quantos milhões não estarão abaixo da linha de um sorriso? O riso solto, os breves cumprimentos dos vizinhos, a conversa de botequim, o dia-a-dia sem tanta violência e regulamentos, os assobios discretos que cruzam os caminhos... A espontaneidade abaixo da linha do medo! Onde estarão os figurantes que sorriam e jogavam conversa fora, sem as pautas estabelecidas da reforma tributária, da previdência, atuação dos políticos, situação, oposição...? Milhões de homens estão abaixo da linha de um sorriso! Milhões de homens suportam a privação de alegria e esperança... “Nunca deixar de me indignar!” Retorno à verdade juvenil e à possibilidade de ação. A imperatividade de revolta e a sensibilidade de percepção podem servir de alimentos para fortalecer o corpo e vencer a linha dos rostos graves e desencantados... Talvez uma grande campanha para que os milhões de desesperançados possam sustentam um sorriso motivado com repercussão internacional...
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 19/06/2005
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