PALPITAÇÕES
Ela chegou preocupada com a dor no peito. Passou a noite inteira se remexendo na cama, tentando compor um pacto com a insônia para abstrair os desenhos nervosos do corpo. Palpitação, arritmia, disritmia... Uma soma de sensações estranhas e dominantes, ânimo de testar as vontades, testemunhar, jurar todas as culpas entranhadas no esquecimento... Uma subtração de variáveis, desânimo de compor o que deixou de fazer tão latente na lembrança, confessar os indultos e os rancores, as dores e as saudades...
Sentiu as batidas do seu coração ecoarem pelas paredes pastéis da sala de espera. Quase teve vergonha de sua indiscrição. A atenção dispersa nas revistas de fofocas, tantos corações doentes, dementes, remendados... Espera. Ligação arrítmica de inquietações, horas mortas, tempo redescoberto num mau presságio... Novas recordações intercalam com o presente como se reviver fosse sempre uma conjugação tardia. Verbos em desuso, verbos naufragados em oceanos de metáforas. Talvez um prudente distanciamento das ações restaurasse a calmaria dos batimentos lineares... Uma porção de antidepressivos, ansiolíticos, orações, promessas... “O coração está forte, ótimo...” Depois de alguns exames, o diagnóstico do cardiologista decepciona. Como? Nem um chiado no peito? Uma palpitação? Há cura para a normalidade? E as contrações amorosas, as paixões, os desesperados atos, os orgasmos, os desatinos, as reconciliações...? O médico percebe a incompletude do seu conhecimento. Os mistérios da medicina que transpassam os séculos em versões psicossomáticas. Enredos remontados dos grandes encontros e rupturas... Corações apertados, divididos, descrentes... As atividades vitais não são fisiológicas, a constância na grafia das correntes cardíacas pode ser um grave alerta para as doenças da alma. Solidão, ceticismo, falta de amor, perda de si... A mulher sai do consultório com a dor acentuada. Deixa marcado o retorno por segurança, é importante ter para onde voltar. Corações aflitos, dispersos, tardios... Atravessa os tantos cruzamentos com o olhar preso aos horizontes ancorados à lembrança, rende-se à harmonia dos dias no compassado relógio das emoções amornadas e distrai-se nas contrações dos gestos desprevenidos. Com ternura, fecha as pálpebras do dia e anoitece em reflexões sazonadas. Acorda abruptamente com o coração disparado e a estranha sensação gestada num furtivo sonho juvenil. Sorri a escuridão de alguns instantes e entrega-se novamente ao encantamento da reconciliação apaixonada com a vida.
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 06/10/2006
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