Colcha de Retalhos

"O homem é um deus quando sonha e não passa de um mendigo quando pensa." Holderlin

Textos

ALEGORIAS E REALIDADES
(escrito durante a guerra do Iraque)

“ – Estranho quadro e estranhos prisioneiros são esses de que tu falas – observou ele.
- Semelhante a nós – continuei. Em primeiro lugar, pensas que, nestas condições, eles tenham visto, de si mesmo e dos outros, algo mais que as sombras projectadas pelo fogo na parede oposta da caverna?”
Platão

Os efeitos de iluminação e sonoplastia talvez surpreendam, mas os figurinos não demonstram tanta criatividade. Cores sóbrias de tecidos tingidos em série contrastam com as diversas faces gravemente maquiadas. Vivas cores de feridas e cicatrizes se estendem pelo corpo, imagens cênicas que prendem pela emoção. A dor imprime no corpo sua linguagem - olhares profundos e faces retorcidas que não podem ser dominados pela palavra.
Figurantes marcham em campos desérticos, caminham rumo a existências áridas.
Preto e vermelho surgem em meio a areia. Sombras e personagens, sombras e ausências... São espectros que desfilam nas paredes, projetando, em nossos interiores, o medo e a insegurança. São máscaras e espelhos, alegorias e realidades...
A platéia tenta se adaptar à nova dinâmica. Desconfortável, reage com a dispersão e, sem compreender o roteiro, busca as informações nos rodapés. Espera encontrar alguma legenda que traduza e justifique os diálogos dos protagonistas.
A experiência é profunda. As pessoas se contorcem nas poltronas, mudam de posição, de olhar, de postura, sem conseguirem se libertar do que se expõe na cena realizada. Inúmeros aparelhos propagam os acontecimentos. As narrações se perdem nos ecos dos alto-falantes. As notícias mutilam nosso inconsciente de forma irreversível.
Somos o que sobrevive e perpetuará!
O enredo de nossas rotinas se contrapõe ao roteiro desenvolvido pelas grandes sombras. Em algum intervalo, a compreensão foi ofuscada e percebemos que nossas vidas eram meras ficções da individualidade e que a construção do personagem havia sido abortada do enredo principal.
A interrupção brusca em algum improviso, talvez uma desatenção. O descompasso necessário para que o absurdo dominasse e pincelasse as imagens com as cores de suas incongruências.
As imagens do inconsciente coletivo... Distante do palco, um homem caminha em minha direção com algumas pedras na mão: grita, gesticula, ameaça matar o inimigo, ameaça lançar as pedras... Ele passa... A multidão passa... Sinto medo, mas o olho com ternura. Ele é apenas mais um homem no mundo precisando se expressar. Julguei-o louco, pois não pude perceber a lucidez de quem procura o inimigo. Seus medos eram tão reais quanto as pedras que carregava.
Salvei-me das suas armas primitivas, da fúria do homem, contudo, fui ferida pela linguagem! Sua voz penetrava meu pensamento e fecundava o horror.
O homem se distanciou, ganhou o horizonte. As luzes o libertavam das sombras, o vasto mundo de seu interior estava a salvo da obscuridade da caverna. Tentei segui-lo, mas estava presa ao caminho, acovardada demais diante da limitação de minhas certezas.
O homem é apenas um anônimo em expectativa!
No palco central, o protagonista assume o papel do autor e remonta o texto com ações inesperadas, o antagonista cresce em manifestações, enquanto o resto do elenco permanece perdido, alguns imitam os fortes personagens centrais; outros, juntam-se em bandos desordenados.
Novas alegorias concebendo virgens realidades.
A platéia tenta interagir, mas existe uma barreira intransponível entre a ficção e a realidade. Existem paixões, ódios e indiferenças se intercalando no numeroso público. Existem razões que estão ocultas, esquecidas... As emoções, à flor da pele, não conseguem refletir nossas reais intenções. Já não temos tanta consciência do nosso papel e ainda guardamos vestígios de passado, de ressentimentos...
No corredor, um rapaz exalta a beleza das explosões. Com o olhar sereno e a voz firme, relata sua satisfação ao ver tantas bolas de fogo projetadas nos muros de suas pulsões. A magia da ficção a criar a multiplicidade de interpretações: o homem está fascinado com a festa pirotécnica: - Os céus são rasgados por luzes. Enquanto, ao lado, pacifistas se manifestam contra a guerra: - Ninguém tem o direito de roubar o brilho das estrelas!
O rapaz e os pacifistas são alguns anônimos em expectativa!
Os recursos cênicos não poupam vidas. No cenário, os corpos se enlaçam e consomem, figurantes são jogados no palco sem roteiros. O espetáculo continua nos improvisos e incertezas, no medo e no heroísmo... Ações e imagens que nunca poderemos traduzir em palavras - o desespero de uma criança ferida não encontra colo para consolo, a morte de um figurante não tem cheiro, som... São imagens como tantas...
O fogo consome a consciência de poucos, as bombas explodem e os corpos se transformam em reticências na linguagem absurda adotada no diálogo dos protagonistas. O bem e o mal, a loucura e a lucidez... O que restará de certeza com a nudez dos personagens?
Cada um com a própria verdade. As imagens refletidas nas paredes são os objetos presentes... São as representações míticas do bem e do mal. As sombras desfilam umedecidas nas línguas de fogo. Tentamos humanizar a crueldade: são corpos inteligentes que atacam, alvos indefesos que não oferecem resistências, mas conseguimos apenas minimizar os sentimentos que nos diferenciam.
As notícias atravessam a emoção. Gostaria de amparar cada criança que chora, cada soldado em seu abandono, cada idoso que se entrega cansado a uma morte violenta, porém tudo o que gostaria são sombras de impossibilidade. São imagens que não encontram espaço no mundo exterior. O palco se transformou em uma caverna a nos aprisionar em representações; os dois protagonistas definem os objetos a serem projetados, e, aprisionados, assistimos ao espetáculo desacreditados entre a ficção e a realidade.
As bolas de fogo que encantam o rapaz são as mesmas que encerram definitivamente algumas vidas representadas. Os homens sentados assistem o fogo dominar as imagens, enquanto, longe das labaredas, os protagonistas discursam verdades.
As representações, permitidas pela coletividade, não serão mais legítimas do que minhas singulares percepções?  As alegorias da caverna não terão mais vivacidade do que a realidade?
Nas cortinas do palco, observo, minha sombra tentando finalizar a peça. Tento encerrar a projeção do enredo, das imagens, das sombras... Mas já estamos impregnados demais de alegorias para sermos reais. Cerro os olhos para que boas intenções sobrevivam. Onde estará a representação do horizonte?
O bem e o mal desfilam no palco. Em discursos desencontrados, incorporam Deus e o Diabo, roubam os demais papeis, servem-se das sobras para sacramentarem as supostas divindades. A salvação está em assumir o inferno, projetar no mundo as labaredas do mal para transcenderem anjos nas fumaças do amanhã.
O caso está encerrado!  Na caverna resta o ar reprimido do purgatório, a impotência diante dos falsos julgamentos, a necessidade de não compreender para viver resignado sob as mortas sombras das obscuras paredes da caverna.
Somos sombras a projetar sombras... Bolas de fogo, labaredas, explosões apenas iluminam nossas ambigüidades e explodem as possibilidades de novos reflexos.
Alegorias e realidades... Anônimos em expectativa!
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 18/06/2005


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