Colcha de Retalhos

"O homem é um deus quando sonha e não passa de um mendigo quando pensa." Holderlin

Textos

ESTELIONATO EMOCIONAL
Ana Maria, divorciada, mãe de dois filhos, gerente de planejamento estratégico de uma empresa, tinha certeza de estar no controle de sua vida e não poderia prever que um dia seria refém das próprias circunstâncias.
A vida se desdobrava nos inúmeros afazeres. Galgou posições profissionais e pessoais. Cresceu. Guardadas algumas culpas e muitas realizações, restava um sentimento de incompletude. Ana Maria acreditava na existência. Era avessa aos conceitos preconcebidos de almas gêmeas e amores incondicionais, mas muitas vezes se flagrava planejando um encontro prazeroso e a construção de uma relação estável. Projeto tantas vezes adiado e alterado.
Foi num coquetel corriqueiro. Ana Maria estava entre amigos quando Rodolfo se aproximou. As apresentações foram formais, porém o clima de magia propiciou uma rápida cumplicidade. Em poucos momentos, os dois conversavam com intimidade, descortinaram seus projetos pessoais e compartilharam as travessuras dos frutos das relações anteriores. A noite encerrou com a certeza de um novo encontro, um olhar malicioso e a troca de telefones.
Ana Maria já estava acostumada com os ensaios de encontros, mas foi surpreendida com a ligação de Rodolfo no dia seguinte. Sentiu a insegurança própria diante do desconhecido. Aceitou o convite com algumas reticências. Um jantar num restaurante aconchegante, vinho e palavras esculpidas no que de mais raro existe na literatura. O cenário perfeito para representação das fantasias, as palavras perfeitas para a construção de um roteiro romântico, os personagens escolhidos numa multidão de desencontrados...
Algumas noites foram suficientes para as juras de amor eterno.  O projeto amoroso ganhava força nas palavras convincentes de Rodolfo. Casamento, filhos, casa no campo, viagens paradisíacas... Ana Maria acreditou no verdadeiro encontro e se desfez de algumas defesas. Apresentou os filhos, mostrou suas fragilidades, assumiu a relação para a família e amigos, afirmou a convicção do enlace na precipitada paixão.
Rodolfo começou a conviver na casa de Ana Maria e a participar dos almoços de família aos domingos. Todos foram envolvidos por seu carisma e sensibilidade. Era certo “Ana Maria havia encontrado o companheiro perfeito.”
O conto de fadas, abruptamente, amadureceu numa narrativa com capítulos imprevisíveis: Rodolfo começou a interferir na relação de Ana Maria com os filhos; os pais de Ana Maria se afastaram assustados com alguns rompantes que presenciaram; Ana Maria deixou de freqüentar os lugares de costume... Sentia receio da instabilidade do companheiro, mas tentava se convencer da sinceridade dos seus sentimentos.  Necessitava crer que o compromisso amoroso era possível...
As juras de amor duelavam com o fel das palavras. As tantas acusações traçaram um perfil de mulher doente com emoções exasperadas. Ana Maria não conseguia se reconhecer nos sentimentos retalhados e se reencontrar com o homem que conhecera.
Sentia pena da carência de Rodolfo, sentia medo de sua agressividade... Vivia dividida entre as desculpas para os amigos e familiares e a necessidade de acreditar no resgate do amante dos primeiros momentos. Os conflitos se tornaram constantes. Desencontros e desconfianças. Frustrações eram escondidas nos ardentes encontros sexuais. Rodolfo e Ana Maria adoeciam com a falta de respeito e carinho, mas insistiam em não perceber a ausência de amor.
O projeto amoroso foi emoldurado nos grandes silêncios. Não havia espaço para verdades individuais, as palavras foram escondidas nos olhares dispersos... As conversas cotidianas e a grande vergonha não declarada dos outros, aos poucos, foram incorporadas nos gestos da mulher fragilizada. Seu desempenho como profissional começou a ser questionado. Como uma administradora não conseguia gerenciar sua vida pessoal?
O sorriso de Ana Maria apagou e ela se encarcerou, refém de suas carências e medos.
Ela tentou se afastar, buscar o que pressentia ter perdido. Viajou, mudou o caminho rotineiro, não atendia o telefone, mas Rodolfo sempre aparecia depois de alguns períodos de distanciamento. Surgia abatido e com promessas de mudanças e discursos renovados.
Um dia, como se alertada de um diagnóstico de uma grave doença, Ana Maria percebeu que sua sanidade estava por um fio e que restava apenas a possibilidade de abortar o projeto amoroso e matar as esperanças com a cicatriz de uma desilusão.
Refugiou-se em seu mundo interior e tentou se reencontrar. Já estava irremediavelmente mudada, mas ainda havia possibilidade de recomeço, resgatando a auto-estima.
Alguns dias de silêncio. Ana Maria retornou aos trajetos cotidianos e viu de longe Rodolfo com o olhar manso e os gestos sedutores conversando com uma conhecida. Distante, assistiu à performance de Rodolfo com indiferença. Não sentia nada, talvez um pouco de pena de si própria. O mesmo olhar prometia as mesmas juras de amor. O cenário se abriu em uma nova perspectiva: a representação do projeto amoroso continuava com uma nova personagem.
Os passos se tornaram leves e sombreados com um sorriso esquecido. Não poderia apagar a história, os sonhos e as cicatrizes gravadas em sua alma, mas sentiu indiferença pelo passado. Compreendeu que algumas vezes viveu palavras que realmente não sentiu, jurou a eternidade quando só tinha o presente, também ludibriou e magoou os outros.
A autoria do estelionato emocional não tem um perfil definido. A prática do delito independe de sexo, idade ou nível social. Não há inocentes. São tantas as armadilhas e tantas as desculpas... O artifício mais poderoso é a esperança depositada no outro sem garantias do resgate do projeto pessoal íntegro.
Ana Maria...
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 18/06/2005


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