Colcha de Retalhos

"O homem é um deus quando sonha e não passa de um mendigo quando pensa." Holderlin

Textos

BENDITO FRUTO
BENDITO FRUTO
(Empurrando com a barriga)

A mulher entra no consultório. Discretamente se identifica e se encolhe no canto das revistas. Passa a folheá-las sem muita atenção. De repente, sente algo estranho como se não estivesse no lugar correto. Será? Olha em volta e vê a gravura de uma rubra maçã cortada ao meio com um bebê ao centro em posição fetal... É o consultório de sua ginecologista.
As reportagens se multiplicam em fotos produzidas e títulos instigantes: “Como mantive meu casamento”, “Ser a outra...”, “ O que os homens não gostam na cama.”... Sente vergonha de ler a intimidade exposta e disposta em folhetins. Será que tudo é tão previsível?
As mulheres, os homens... Todos personagens de enredos empobrecidos nas constâncias do que chamam vida afetiva e sexual. Experiências são dessecadas como roteiros de sucesso no olhar do leitor.
Um novo estranhamento domina a mulher. Ela olha em volta com prudência. Prende o olhar na gravura da maçã: a fruta e seu fruto. A secretária atende as ligações com a voz suavemente afetada, enquanto uma senhora entra na ante-sala e senta no outro sofá com as pernas cuidadosamente cruzadas. Alguns minutos de inquietações são desenhados nos movimentos de suas mãos, mas ela logo pega uma revista e esconde o desenho de sua face na foto estampada de uma modelo produzida.
Uma voz masculina preenche o espaço. Eis o estranhamento. Fala alto, dá risada... O tom grave complementa o corpo feminino tão representado nas paredes do consultório. A mulher disfarça finge não ouvir a energia dos sons libertos atrás da porta. Quem será? O que o faz entrar no universo feminino e reproduzi-lo no riso solto com tanta espontaneidade?
A mulher desiste da revista. Sente-se perder em tantos argumentos eivados de produções. Passa as mãos no ventre, os exames de rotina estão em ordem, sua intimidade está saudável, sem corpos estranhos, sem observações... Prende as palmas sobre as coxas, tenta tornar seguro seu corpo. Abaixa a cabeça e busca desenhar o correr das horas nas palavras do homem desconhecido. Percebe a voz da médica na interlocução, mas não consegue decifrar o diálogo. Tanta alegria...
Abrem a porta de repente. A mulher consegue ver o contorno de um ventre estufado dar nova forma ao batente. A enorme barriga verga ao desejável estar no mundo. A futura mãe desliza o peso dos últimos momentos, seus passos são sombras concretas no chão... Logo atrás, com um braço apoiado sobre os ombros da gestante, um homem sustenta o sonho de ser pai e ilumina a sala com a data marcada para o parto.
“Até amanhã, doutora! É bom que ganharemos o fim de semana...”
O homem sorri enquanto a cumprimenta com as duas mãos. Dá a luz a suas expectativas.
“É amanhã...”
A mulher se desvencilha de suas amarras, abandona o teor de suas leituras, levanta-se e cumprimenta o casal. Compartilha a alegria, sente a realidade das pinceladas da gravura da maçã. O prazer da mordida do saboroso fruto, a realização de estar alimentado, ao tempo que alimenta e semeia um solo fértil.
O casal se despede. A voz masculina torna-se distante, o riso ainda preenche os cantos... Amanhã!
A médica sorri, sente-se realizada.
“Está todo bobo! Esperaram tanto e agora... Acho que será uma mãe...”
A secretária diz que ele compareceu em todas as consultas, presenciou todos os descobrimentos... A senhora, sentada ao lado, apóia a revista sobre as pernas e declara em tom profético.
“Fazer filho é fácil, o difícil é cuidar. Deixa o tempo... O meu marido não trocou uma fralda. Deixou-me sempre a função de cuidar dos três filhos. Mas é assim... Temos de agüentar... Fazem dezoito anos e sempre a mesma coisa. Temos de agüentar...”
As quatro mulheres se entreolharam. A médica e a secretária envolvem-se na necessidade de desmarcar alguns horários. Amanhã será um dia de partos, existem ainda duas probabilidades. A senhora vira-se para mulher, com um misto de espanto e certeza, e reitera:
“Temos de agüentar, não!”
A mulher pega novamente uma revista e, com algumas lágrimas escondidas, responde constrangida.
“Separei-me grávida. Não agüentei...”
A mulher fecha os olhos, encarcera o choro nas grades da construção do desejo no ventre. Deixa-se embalar pelo liberto riso do homem, pelo encantamento de ser pai... Lembra-se do olhar carinhoso do seu filho, das primeiras palavras, das constantes preocupações... Recorta as lembranças e as cola sobre a gravura. Apropria-se do presente com novos traços para um futuro desenho.  Transforma-se numa maçã inteira, madura para ser devorada e transformada.
O consultório é dominado pelas obscuras brumas do universo feminino. A voz distante do pai dá a luz a uma nova perspectiva na vida das quatro mulheres.
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 15/06/2005


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