MOZART EM SI
Julho de 1985. Festival da Música em Salzburg. Um longo passeio nos jardins do Palácio Mirabell, cercado pelas fortes cores dos dias de verão, abre a janela do horizonte suspenso na visão encantada do castelo de Salzburg. O sonho é quase realidade. A bela cidade é emoldurada pela tarde clara e prolongada. Um pequeno grupo entra no palácio, percorre os corredores como se pudesse adentrar no tempo e chega ao Salão de Mármore para a apresentação de um concerto de Mozart. O público se equilibra nas cadeiras seculares e aguarda a partida para a harmoniosa jornada ao reinado de Santa Cecília. Os músicos entram e logo começam a afinação dos instrumentos: um piano, um violoncelo e dois violinos. O guia da excursão fala baixinho que foi naquele salão que o menino Mozart se apresentou pela primeira vez ao lado do pai e da irmã Nannerl. Os primeiros acordes da sonata conjugados com a informação do guia recortam o instante e o transportam para a atemporalidade das grandes obras, a necessidade de resgatar o ser na genialidade de poucos e de consagrar a vida com a beleza e poesia de um andante. Lágrimas. A jovem debutante vivencia, pela primeira vez, as emoções extremadas, a percepção da solidão e o resgate da universalidade... A comoção a transporta para reinos imaginários e lá, quase si, ela encontra o pequeno Mozart descobrindo as terças no cravo e idealizando os personagens mágicos de suas óperas. Depois de brincar com as teclas do instrumento, ele pega o seu cavalinho-de-pau e galopa pelo salão até sumir nos corredores do palácio. Corta a cena. Duas décadas depois, com as comemorações dos duzentos e cinqüenta anos de nascimento de Mozart, a mulher é tomada pelos vestígios arqueológicos da emoção. Uma perplexidade madura é resgatada nas próprias vivências e alicerçada na percepção juvenil desvirginada. O encontro com Mozart numa lembrança encantada, próxima dos reinos imaginários criados pelo menino e pelo homem, propicia uma profunda reflexão sobre sua própria vida e seus sonhos. Ao som das primeiras sonatas compostas para cravo e violino, a mulher é envolvida pelos acordes em tonalidade maior e almeja a compreensão do contexto histórico, do classicismo, da vida, da arte e das pequenas travessuras do compositor. Já não são suficientes os resumos estereotipados de sua biografia ou a audição superficial de suas obras, é instigante a busca de suas palavras nas cartas transcritas por Kurt Pahlen em Crônica de Vida e Obra, nas interpretações da célebre biografia de Wolfgang Hildesheimer e no livro Procurar Mozart do crítico de arte Olívio Tavares de Araújo. Durante alguns dias, a vida da mulher fica intimamente entrelaçada a de Mozart. Parece compartilhar os sonhos e dissipar as inquietações. Até que numa manhã, ainda sonolenta, ela sente um leve roçar de asas em sua face e acorda com o canto dos pássaros enfeitiçados pela flauta mágica. O personagem da ópera, Papageno, é a projeção da aspiração infantil. O menino que cresce para ser feliz e para tanto tem pés e asas. O sol contrastante com o si bemol de algumas iniciações. A mulher acaricia o livro apoiado na cabeceira e sorri diante da pintura do pequeno Mozart, vestido com as vestes lilás, com as bordas douradas, com espadachim e peruca, traje doado pela imperatriz da Áustria, Maria Tereza, para uma apresentação em que o virtuoso menino tocou até vendado para mostrar sua aptidão. A apresentação artística tomou proporções circenses, mas Mozart aproveitou a venda para se transportar ao seu reino encantado e criar, com os olhos fechados, os infinitos horizontes que foram desvendados com as suas composições.
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 14/09/2006
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