Ou o caos ou eu... - Otto Lara Resende
Ou o caos ou eu... Assim o personagem Índio, militar que se tornou ditador de um país sul-americano, encerrou sua carreira na vida pública. A primeira pessoa do singular, tão eminente nos pronunciamentos e na propriedade das ações, enfim, foi rendida pelo inimigo, minimizada por uma coletividade desestruturada. A confusão dos elementos gerou um novo mundo. O poder se transforma e os cargos são reformulados. Ou o caos... Será que tudo inicia em tão precária alternativa? O protagonista encerra as ações em lugares comuns. Incorpora um pseudo sentimento que justifica suas ambições. O poder é galgado com os ventos do acaso. As circunstâncias muitas vezes legitimam personagens em enredos necessários para a leitura coletiva. Precisamos de personagem! A primeira pessoa do plural demonstra a percepção individual de um mundo coletivo. Ou nós... A própria alcunha de nosso anti-herói já demonstra o mundo de aparências remodeladas. Índio tinha sangue negro, mas recebeu o apelido pela pele amorenada. Não se incomodou, fingiu não perceber como o tratavam distante dos aparatos solenes. Com o tempo, tornou-se indiferente até à própria esposa que o ignorava, ao povo que representava, aos subordinados, ao cunhado... Enfim, a Pátria e os inimigos ocultos eram as grandes presenças. Não podia esquecê-los, era imprescindível sua atenção permanente. Sempre em guarda! Quem será o inimigo? O indivíduo, o povo, a nação ou o eu que não se verbaliza? O eu oculto responsável pelos erros e pelos infortúnios do eu a cargo do mundo? “Identificar o inimigo. Sua permanente obsessão: o inimigo, onde está o inimigo? O grande culpado. Precisava do inimigo, tinha que encarná-lo, aniquilá-lo.” “O inimigo parecia vencido, mas era preciso não o esquecer. Existem sempre inimigos.” “Todas as noites mandava um ajudante-de-ordens telefonar às guarnições para verificar se não havia alguém conspirando. O inimigo: jamais esquecê-lo, distrair-se.” “Para nada. Para sentir-se existindo. Ninguém mais tomava conhecimento da sua existência, ninguém o perseguia. Ninguém o bajulava.” O texto encerra com a certeza de que o inimigo existe. Contudo, não conseguimos identificá-lo atrás das mãos que praticam o misericordioso golpe, ele apenas é a ação que interrompe o eu do personagem. Durante toda a narrativa, acreditamos tratar-se de uma paranóia de um homem sem grandes brilhantismos, mas o conto encerra em uma praça numa terra distante, onde o homem, exilado de suas representações, encontra-se à margem da vida cotidiana, com a rotina viciada pelas pompas do mundo. O inimigo surge e encerra a participação do protagonista. "Viva la Patria!" Murmurou seu último pronunciamento, mas ninguém ouviu. Salve la patria, conto desvelador de Otto Lara Resende no livro As pompas do mundo, introduz o mundo por um personagem que sobe os degraus desde sua filiação em cargos pomposos, até os lugares comuns que encontraram os ventos do acaso e o transformaram em uma figura pública importante. A dualidade de um indivíduo que vive a cargo da pátria ao tempo que a despreza, que não tem apego aos valores materiais e envia quantias a bancos no exterior. Enfim, a dualidade de um homem que também é o próprio inimigo. Otto Lara Resende, autor de célebres frases, nasceu em Minas Gerais no seio da tradicional família mineira e cedo tornou-se professor e jornalista. Em 1939, o escritor ingressou no serviço público, trabalhando no Serviço de Imposto Territorial da Secretaria de Finanças de Minas. Formado em Direito, após servir em diversas secretarias, foi nomeado Procurador do Estado da Guanabara em 1960. Nos dias tumultuados que seguiram à renúncia de Jango, o escritor foi chamado pelo amigo Magalhães Pinto, então governador de Minas Gerais, para redigir uma declaração esclarecedora quanto a posição do governador em relação à posse de Jango. Consta desse documento uma das frases mais célebres de Otto, um exemplo de posição em cima do muro: "Minas está onde sempre esteve". A expressão de suas frases o consagrou como uma grande frasista. Destaco algumas pérolas do autor: "O único erro humano que merece a pena de morte é o de revisão"; "Patrão de esquerda só é bom até o dia do pagamento"; "Tenho para mim que sei, como todos os brasileiros, os três primeiros minutos de qualquer assunto", e "Sou autor de muitos originais e de nenhuma originalidade". Além da frase imortalizada na obra de Nelson Rodrigues "O mineiro só é solidário no câncer". Na peça Bonitinha mas ordinária ou Otto Lara Resende, o autor colocou o nome de Otto Lara Resende quarenta e sete vezes na boca dos personagens. Otto não gostou e, em represália, não compareceu a estréia. A personalidade de Otto Lara Resende até hoje permanece um desafio para os autores de biografias. O enorme potencial de escritor, jornalista e professor de um homem nascido no ventre da tradicional família mineira, bom cristão, voltado para família, contrasta com a forma absoluta como desvenda algumas fraquezas e hipocrisias humanas em contos como os presentes nos livros Boca do inferno (1957) e As pompas do mundo (1975). O reconhecido talento para alcançar os objetivos pretendidos do autor se contrasta com o lugar comum do personagem de Viva la patria. Talvez possamos nos reconhecer em cada um, nas frases originais e na reprodução dos lugares comuns... Vivemos de grandes contrastes e para tanto é necessário incorporar o inimigo e perceber que o seu espaço no mundo só pode ser obstado de forma definitiva pelo golpe de sua inação. O Inimigo existe! Atentos, começaremos a vencê-lo no próprio corpo.
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 25/01/2005
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