Colcha de Retalhos

"O homem é um deus quando sonha e não passa de um mendigo quando pensa." Holderlin

Textos

O HOMEM QUE NÃO PODIA SE MEXER - ANÍSIO HOMEM

“A ficção e a realidade se entremeiam sem fronteiras fixas entre elas.”
Anísio Homem

“As coisas não vão bem...” Num futuro próximo, Bill, presidente do Banco Central norte-americano, assiste às pirâmides de cotações de moedas no hipermonitor. Surpreende-se com a queda desmotivada... Uma piscadela, um cisco no olho e os mercados sensíveis se sugestionam... A moeda cai.
O assessor Jordan, diante dos comentários divertidos do presidente, explica, com seriedade, as conseqüências decorrentes do gesto leviano da autoridade: “...Se o senhor tivesse tirado os óculos de forma abrupta teriam dado um significado econômico a este gesto.”
O presidente pertence a uma família milionária tradicional, seu cargo é decorrente do “dever de casta”. O assessor é um burocrata técnico bem-sucedido. As sombras das representações sociais estão demarcadas nos cargos do poder.
Encerramos o primeiro capítulo com a palavra-chave da novela: manipulação. A tênue fronteira entre manipulação e argumentação é delimitada e, perplexos, assistimos ao jogo de pôquer com as cartas marcadas dos poderosos. Nos paralelos fictícios ainda não perdemos a capacidade de indignação.
Longe dos gabinetes, a piscadela ganha conotação sexual. Os amigos brincam com os alcances eróticos e financeiros atingidos com esta jogada. Criam metáforas para o exercício do poder:
“Pôquer-face é a capacidade de dissimulação, de não emitir sinais reveladores, ser impassível diante do inimigo, é o talento para ganhar com grandes cartas ou através de um magnífico blefe.”
Segunda-feira de cinzas. No Banco Central, o presidente é informado sobre a importância da próxima aparição no Comitê Econômico do Congresso, quando apresentará o “viés inercial da taxa de juros”.
O misterioso “viés inercial” irá quebrar a cabeça dos congressistas e deixar o mercado sem ação. Os jornalistas econômicos ganharão assunto para novas avaliações. Os mais ousados poderão até especular sobre as novas tendências da economia, os conservadores blindarão seus artigos com fundamentos clássicos de economia.
O espetáculo armado, o “bode” no cenário, um protagonista sem identidade, sem fala, sem marcação... Todos os elementos para uma grande apresentação. Os mercados ficarão sem ação diante do novo roteiro. Os sujeitos da manipulação trocarão as posições com o surgimento da nova denominação...
A apresentação é cuidadosamente formulada pelo corpo técnico do Banco Central, encabeçado pelo competente e ambicioso Jordan. Os riscos de improvisos devem ser reduzidos a zero. Os assessores resolvem induzir ao coma o presidente.
Será apenas a criação de um mártir provisório. Uma intervenção rápida e segura.
“O ritual do inanimado”.  O presidente em coma não emite sinal algum que leve a qualquer dedução no esperado dia. Aos poucos, o frenesi das bolsas, a indignação dos parlamentares e a inquietação dos jornalistas se dispersam em novos fatos.
Todos estão presos, como marionetes, às linhas fixas de expressão do poder. Titeriteiros hábeis usam “a inanição como prova de um banco central independente.” A estabilidade é reconquistada com a prostração do seu representante.
Um “simples efeito colateral”. Bill sofre algumas complicações clínicas e permanece em coma. A aflição dos assessores é aliviada com a entrada em cena de um novo bode expiatório: a medicina. O médico é responsabilizado pela indução da economia ao coma... As primeiras emoções se dissolvem na certeza da jogada do melhor pôquer-face. Não haverá emissões indevidas, o Banco Central estará livre das pressões políticas e midiáticas.
Para os inveterados jogadores, o fim da novela é apenas o início de uma nova partida de pôquer.
“O homem que não podia se mover” é uma sátira perfeita ao jogo praticado nos mercados globalizados, à banalização do homem e da ética, à manipulação irrestrita da palavra... O grande espetáculo, do qual a maioria da população permanece excluída, é apresentado nos diálogos rápidos e no texto envolvente de Anísio Homem.
O leitor é seduzido pela ironia. Os personagens parecem caricaturas, contudo, no final da leitura, percebemos que são tão reais quanto as personalidades que dão as cartas no cenário econômico. Conseguimos nos identificar com “o homem que não podia se mover” quando lembramos da própria apatia diante dos rumos das políticas econômicas que manipulam nossos movimentos nos mercados globalizados.
A novela de Anísio Homem, recém-publicada pela Editora Letras Contemporâneas (www.letrascontemporaneas.com.br), é uma leitura obrigatória para todos os que não perderam a consciência crítica e que pretendem de alguma forma contribuir para um mundo mais ético.
O que fazer com argumentos tão reais? Ficar enviesado entre a inércia e a indiferença? Ou assumir movimentos abruptos que reacendam a importância do homem?



Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 24/01/2005


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