Colcha de Retalhos

"O homem é um deus quando sonha e não passa de um mendigo quando pensa." Holderlin

Textos

AUTORIAS COMPARTILHADAS - PERSONAGENS
Coração disparado... Um instante e os retalhos de lembranças estão incorporados no conhecido corpo. O passado invade a tênue moldura presente e projeta sentimentos e sensações fortes na imagem espelhada no futuro. Os dois personagens se aproximam, as mãos se refugiam nos bolsos, trocas de olhares traem as aparências contínuas...
“Bom te ver! Por que não me avisou?”
“Não sabia... Foi tudo de repente...”
A imagem se perde no tempo. São olhos que brilham e encontram no outro a satisfação em algumas prazerosas lembranças, mas também são olhos constrangidos, confusos entre a discrição dos encontros formais e a intimidade dos olhares compartilhados.
“Está bonita!”
“Você... Como está?”
O primeiro encontro, a particularidade do prazer, sonhos, alguns mútuos ressentimentos... A relação de tanto tempo, marcada por um diálogo passional, cicatrizou sem continuidade. Quantos fragmentos poderiam crescer, quantos não foram abortados...! Talvez uma narração concluída...
A memória corporal desenha no corpo algumas sensações... O olhar veste fantasias... A linguagem metafórica atropela a razão nos rimados anseios e esconde os receios em reticentes termos.
Falam de suas realizações, da vida agitada... Mas não se escutam, apenas imaginam o que passa no outro: o que não se diz. Insistem em demonstrar que permanecem sozinhos. Expectativas atropelam os gestos. “O que pensa?” “Será que ainda...?”
“Tenho acompanhado seus textos... Você mudou?”
“Faz tempo...”
As mesmas bebidas e músicas pincelam o ato. As mãos se tocam na mesa em alguns movimentos descuidados. Alguns sorrisos ensaiam a alegria, os ressentimentos se perdem nos conhecidos acordes. Por quê?
“Posso tocar?”
O homem dedilha o ombro da mulher com suavidade. Ela balança a cabeça enquanto se deixa reescrever com o sentimento. Sorri e responde à pergunta infantil com um olhar bordado de tênue malícia. A iniciativa do homem abre uma nova janela para o encontro. Por que fecharam as portas?
“Não consigo esquecer...”
“Penso com carinho...”
Declarações tímidas... Deixam o olhar penetrar o outro, compartilham os contidos desejos e a desmedida ansiedade. Entregam-se às veladas intenções. Os lábios, as mãos, os olhos... Os dois convergem ao conhecido porto. Talvez criem expectativas especulares, talvez alicercem alguma possibilidade...
“Tive medo de um dia me reconhecer como personagem...”
“Que personagem?”
O homem fica embaraçado com a pergunta. Foi uma breve confissão. Busca as reticências para concluir seu descuido, mas não consegue dissimular o receio de se transformar em mera representação. A mulher costura as palavras, elabora um novo retalho. Talvez a narração não esteja concluída...
Os movimentos amadurecem em versos suaves. A releitura do encontro e a reflexão compartilhada possibilitam um novo enredo. As palavras silenciam. Só há possibilidade de narração para as emoções distanciadas.
O autor se aprisiona em alicerces de ficção quando escreve suas vivências. Sempre há possibilidade de novas leituras para os acontecimentos passados, refúgio nas entrelinhas para os segredos. Com o tempo, todos se transformam em personagens de própria autoria.
O casal deixa-se penetrar pela inspiração e começa um novo capítulo...
Quem sabe motivo para uma crônica?
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 09/06/2005


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