SOMBRAS DA ROMÃNZEIRA - TARIQ ALI
“O bispo e o cético ficaram por um instante parados, encarando-se. Eles um dia pertenceram à mesma civilização que desapareceu, mas o universo de cada um tinha sido separado por um mar invisível.”
Ler um livro do Quinteto Islâmico de Tariq Ali exige dedicação exclusiva. Um ritual delicado de preparação, de limpeza de todos os preconceitos e leituras superficiais, para embarcar rumo aos séculos com o pensamento arremessado nas ondas da civilização islâmica. Não há como não se envolver e aprender a história alinhavada com a envolvente ficção do escritor paquistanês. Sombras da romãnzeira é a projeção silenciosa dos séculos em que os muçulmanos dominaram o sul da Espanha, região conhecida por Andaluz, e semearam a sua cultura deixando marcas indeléveis na terra. Logo no prólogo, somos aquecidos com a grande fogueira de livros escritos em árabe, comandada pelo cardeal Ximenes de Cisneros, confessor da rainha Isabel, a Católica, em dezembro de 1499, representando a quebra do acordo de rendição firmado em 1492 que assegurava a liberdade de culto para a maioria muçulmana. Numa única noite, tratados de teologia, manuais de medicina e astronomia, livros de poesia, exemplares do Alcorão queimam junto aos séculos de conhecimento. “Sobre o borralho de uma tragédia, espreita a sombra de outra.” A aldeia de Al-Hudail, nas proximidades de Granada, é o cenário para o encontro dos fortes personagens e a reflexão aprofundada dos medos, das conversões, do ceticismo e da resistência. A fidelidade ao islamismo demonstrada pelo patriaraca Omar bin Abdala, seus filhos e pelos aldeões; a conversão de alguns parentes próximos estimuladas pelo cardeal Miguel, tio de Omar, muçulmano convertido e bispo de Córdoba, e o ceticismo do místico al-Zindiq são confrontados num momento histórico único que culminou com a expulsão dos muçulmanos de Granada. Ximenes de Cisneros era o o “primeiro arcebispo de Espanha a ser realmente celibatário”, “um padre que vivia de acordo com o que pregava” e, entretanto, foi o instrumento vital para as arbitrariedades cometidas pela Inquisição contra os muçulmanos e judeus em Granada, porque ele sabia o poder das idéias e as consequências da fogueira de livros árabes. "Para que serve a vida sem nossos livros de conhecimento?" As figuras esculpidas dos mouros e cristãos no tabuleiro de xadrez do pequeno Yazid bin Omar é a metáfora perfeita para o período sangrento e cruel que seguiu a instauração da Inquisição Espanhola e a intolerância religiosa que culminou no crime contra séculos de cultura e arte. Mas Tariq Ali não é maniqueísta e apresenta as tantas perspectivas sem conter as culpas, como na fala do cético al-Zindiq: “Nós achávamos que os velhos tempos podiam acabar em toda parte, mas nunca em Garnata. Tínhamos certeza de que o reino do islã sobreviveria em al-Andaluz, mas subestimamos nossa capacidade de autodestruição. Aqueles dias nunca mais voltarão, sabe por quê? Porque os defensores da fé brigavam entre si, se matavam e mostraram que não conseguiam se unir contra os cristãos. Até ser tarde demais.” A coragem do filho Zuair bin Omar e o seu amadurecimento não são suficientes para poupar sua família da trajédia. As paixões quando carregam estandartes religiosos jamais se aproximam da razão e sempre culminam em atos brutais que sangram a humanidade e jamais serão perdoados. A morte de mulheres e crianças é justificada pelo temor do capitão exteriorizado para os soldados após a chacina na aldeia de Al-Hudail: “Eu não disse hoje cedo que o ódio dos sobreviventes é o veneno que pode nos destruir?” Sombra da romãnzeira é um romance imprescindível para conhecer a história islâmica e da reconquista cristã durante o reinado dos reis católicos de Espanha, compreender o presente tão propagado nos veículos midiáticos e criar perspectivas para o futuro com a valorização do séculos de cultura islãmica e de sua influência no ocidente.
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 28/08/2006
Alterado em 29/08/2006 |