FANTASMAS DA REALIDADE
"Vivíamos horas impossíveis, cheias de sermos nós... E isto porque sabíamos, com toda a carne de nossa carne, que não éramos uma realidade."
Fernando Pessoa Como perceber a realidade? Será que basta vestir as lentes sociais e decifrar os códigos? Ou será necessário se despir das convergências do senso comum e assumir uma nova percepção do mundo? Perguntas não esgotam as possibilidades. A realidade se vela e desvela dentro dos contextos determinantes, das compreensões culturais, e não expressa nada além de um vago espectro da verdade. As memórias transformam o presente e deturpam muitas vezes as experiências inaugurais. Reticências deixam a linguagem sombreada entre os pontos de origem e partida. As exclamações são escondidas nos corpos ausentes. Inúmeros espelhos abrem-se na multidão. O ser tenta focar a própria individualidade nos padrões instituídos pelo outro. Nos entreabertos planos, a imagem que aparece é tão ilusória quanto a que se esconde no esquecimento. Uma palavra e as tantas interpretações, um objeto e as tantas projeções, uma realidade e as tantas ilusões... A culpa sangra na cruz e traduz os medos incorporados; o erotismo das imagens do kama sutra exalta o prazer quase sagrado; a flor margeia a declaração de amor e o luto; a banalização sexual exposta sobre os lençóis maculados simula o abandono; a lucidez no grito do louco trai algumas autoridades, a razão exaurida nos articulados discursos recria novos símbolos; o fracasso dá alicerces para carrascos, realezas ou novos messias, fetiches possibilitam novas máscaras, fantasmas convivem com suposições do real... Sujeitos conjugam o objeto e reconstroem a realidade com a deficiência das empobrecidas referências. O futuro está condenado a ser decifrado com as lentes de vivências. O passado se transforma em ficção de própria autoria, leitura influenciada pela alienação satisfatória ou pelo ressentimento cicatrizado nas tantas dores. O presente reticente é um fantasma assombrado pelos tempos distantes, ou simplesmente, esquecido entre as inquietações. Amálgamas... Fragmentos são costurados numa maquete representativa da realidade. O significado do mundo ganha os contornos das forças sociais e da subjetiva acobertada num olhar enigmático. Algumas ações ficam sem justificativas, muitas reações se perdem na indução do outro... Os conflitos são abortados e resta uma representação linear, distante das aberrações e mutilações de algumas leituras. Silêncios reverberam! O cinema encontra o distanciamento necessário para abordar os véus das realidades cotidianas. No filme “O Enigma de Kaspar Hauser”, de Weiner Herzog, cuja tradução literal do título é “Cada um por si e Deus contra todos”, a história não desvendada do jovem encontrado em Nuremberg em 1828, de origem desconhecida e completamente alheio à sociedade, apresenta a linguagem como decodificadora da realidade, mas distante das referências amadurecidas nos seios da educação e da socialização. O existente é interpretado e sentido de forma original. Kaspar Hauser, personagem de olhar arregalado e atitudes surpreendentes, faz uma verdadeira revolução na sociedade ao apresentá-la da forma como é vista sem estar predeterminado a acreditar e aceitá-la como é habitualmente compreendida. Seu nascimento e sua morte permanecem como enigmas não decifrados, mas certamente a breve vida de Kaspar Hauser inicia uma nova perspectiva para os mais ousados. Ainda assombrados com os fantasmas nas brumas cotidianas, podemos negar as referências existentes e fabricar uma nova percepção.
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 06/06/2005
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