Colcha de Retalhos

"O homem é um deus quando sonha e não passa de um mendigo quando pensa." Holderlin

Textos

A TERCEIRA MARGEM DO RIO - GUIMARÃES ROSA
O Homem manda construir uma canoa, despede-se da família sem palavra alguma e parte, tornando-se rio... Rio abaixo, rio acima, o pai, desfigurado de tempo, transforma-se em paisagem enquanto, à margem, o filho acompanha sua trajetória e tenta definir os porquês.
A rotina incorpora o mistério. A família se adapta à nova realidade, cria novas margens para o curso cotidiano, nascimentos e mortes marcam o tempo, e o que os outros falam preenche o pensamento da família. A culpa permeia os sobreviventes, mas todos se calam diante do silêncio da terceira margem.
O homem e o rio... Todos fingem não perceber a loucura - a lucidez é rendida pela culpa. Por que o homem abandonou a margem para ser meio de rio? Por que o filho abandonou a travessia para ser margem?
Sem destino, não há mais origem... A vida desmorona em frágeis margens... O homem, o filho, o rio... Paisagens coisificadas no mundo, homens lançados à margem de qualquer possibilidade.
A terceira margem do rio é um conto primoroso de Guimarães Rosa, onde o autor aborda a loucura e o abandono com a poesia e a linguagem que caracterizam o grande escritor. Trata metaforicamente a origem, o destino e a travessia, a necessidade de viver as águas, ora violentas, ora calmas, do rio com o objetivo de chegar ao lugar almejado.
O conto termina quando, num ato desesperado, o filho se oferece para ficar na canoa no lugar do pai e foge com a aproximação do mesmo. A iminência de se tornar rio e o primeiro gesto do pai depois de tantos anos o preenchem de medo. O filho pede perdão pelo "procedimento desatinado", mas o pai desapareceu para sempre no rio.
"Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água, que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio adentro - o rio."
Em outras obras de Guimarães Rosa, encontramos as margens e os rios. No romance Grande sertão - Veredas, o protagonista Riobaldo fala sobre as margens do rio e como não percebemos a travessia por estarmos tão preenchidos de margens - de origens e destinos. A vida aporta às margens e não incorpora as vivências do rio.
"Ah, tem uma repetição, que sempre outras vezes em minha vida acontece. Eu atravesso as coisas - e no meio da travessia não vejo! - só estava era entretido nas idéias dos lugares de saída e de chegada."
Homens que abandonam os ideais e ficam a cargo do rio da rotina; outros que enlouquecem e perdem o sentido, e ainda os que apenas preferem constituir calados à terceira margem, tornando-se indiferentes ao mundo. Não há responsabilidades ou objetivos, são apenas margens da margem num rio indiferente.
São tantos os rios passíveis de travessia... E também tantas as margens... Reticente, a linguagem demonstra a possibilidade de navegação dos grandes rios. O recomeço, a recriação de cada margem de origem e a transformação do destino em um novo porto inicial. Não são apenas as palavras de Guimarães Rosa que margeiam os grandes rios, são as ações, as diversas etapas de sua vida que demonstram a grandeza dos grandes navegadores.
Em 1952, Guimarães Rosa retornou aos seus "gerais" quando participou junto com um grupo de vaqueiros por uma viagem pelo sertão - longa viagem às raízes deste ilustre brasileiro que criou na literatura uma nova linguagem, imortalizando os homens que permaneceram à margem da história brasileira.
Com tantas veredas conquistadas na aridez dos sertões cotidianos, Guimarães Rosa é a pluralidade das margens, o curso dos rios ou a viagem aos grandes sertões individuais como inspiração para tantas novas crônicas. Aventurar-se na travessia é dar margem ao desbravamento de nossas possibilidades, escrevendo as lutas e realizações no centro do manuscrito.
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 06/06/2005


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