Colcha de Retalhos

"O homem é um deus quando sonha e não passa de um mendigo quando pensa." Holderlin

Textos

BOM DIA CAMARADAS - ONDJAKI


“O sonho foi tão barulhento e cheio de confusões e tiros, que a minha mãe teve que me acordar quase de manhã a pedir-me para eu não dizer tantos disparates enquanto sonhava.”

Bom Dia Camaradas, romance do escritor angolano Ondjaki, expõe a trajetória de Angola depois da independência, ambientado em Luanda na década de 80. Narra um momento que “aconteceu” ao autor e faz parte da formação da sociedade e da utopia.

O protagonista é um menino da classe média pós-colonial que narra seus dias em paralelo com o ano letivo. Uma poética história que revela o mundo nos diálogos com o camarada Antônio, nas aulas dos professores cubanos, nos cartões de racionamento, na visita da tia que vem de Portugal, nos medos, nas despedidas, nos sonhos e nas percepções em câmara lenta.

Algumas situações, alinhavadas com a inocência do menino narrador e com a suave ironia do escritor, são reveladoras e demonstram a ausência de liberdade das pessoas: a entrega do papel datilografado e carimbado para os estudantes que supostamente estariam apresentando suas redações na Rádio Nacional; as formações de estudantes com o fardamento completo para o desfile de 1º de Maio com a presença do presidente; o casal que, ao fotografar um macaquinho no saguão do aeroporto, é violentamente interpelado  por questão de segurança nacional por um FLAP, e o silêncio dos adultos que ficam a cheirar o ar para dissimular alguns constrangimentos diante dos atos das autoridades.

Uma narrativa onírica que leva os leitores a um “antigamente”, embriaga-os com as figuras poéticas vivas na imaginação do pequeno e os envolve com a história da ex-colônia que se tornou independente de Portugal em 1975, quando o poder se manteve com o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), apesar de grande parte do território ter ficado sob o domínio da UNITA. Angola viveu durante décadas mergulhada em conflitos internos, guerras civis que mataram mais de um milhão de pessoas, e atualmente tenta se modernizar e recuperar as perdas contabilizadas.

O camarada Antônio contrasta com as mudanças, é a exteriorização da opinião de parte de uma camada social favorável ao período da colonização portuguesa. É nostálgico em relação ao tempo dos brancos num país que ainda busca a sua identidade nacional. O menino percebe o seu posicionamento e pergunta todas as manhãs se ele não prefere que o país seja livre. O camarada Antônio, sem grandes argumentos, responde reticente que “no tempo do branco isto não era assim...”

Todos os personagens têm nomes e identificações, mas o personagem narrador não é nomeado. É a voz que reverbera no íntimo de todos, a ponte que liga a poesia de perceber o cheiro das manhãs e o espreguiçar do abacateiro à lucidez de compreender a realidade das transformações sociais, dos silêncios dos adultos, da ostensiva presença das forças armadas nas ruas, do medo dos caminhões urais e do Caixão Vazio, projeção inspirada na lenda urbana presente na infância do autor.

Quando os olhos amadurecem, as percepções ficam eivadas pelas paixões e pelos posicionamentos no mundo. Não é mais possível alcançar o mundo com o olhar imparcial dos infantes, ter a compreensão sem obstáculos para compreender a história e o presente como janelas abertas para o futuro almejado. Muitas vezes, a memória é relegada ao esquecimento por conveniência, em outros momentos, ela é alterada como a redação do menino que é substituída pelo papel datilografado e carimbado com as idéias oficiais.

Ondjaki ousou ao buscar em suas reminiscências o enredo para costurar sua narrativa e conseguiu, com muito lirismo, compor uma obra literária e um documento histórico para todos os que querem compreender o presente de Angola.
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 16/08/2006


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