DIÁRIO DE UM DETENTO
O absurdo permanece.
O livro Diário de um detento é a prova literária que faltava para um julgamento individual sobre a nossa participação na sociedade e a aprovação tácita do sistema penitenciário e judiciário. Baseado nas experiências vividas por Jocenir, demonstra a contemporaneidade de grandes obras literárias, como por exemplo, O processo, de Franz Kafka, e Um caso tenebroso, de Honoré de Balzac. A trajetória de homens comuns, o mundo das cavernas, muralhas e castelos... Figuras tratadas na literatura e distanciadas do mundo... O Eu autor sempre distante do Eu agente/paciente. O mundo enclausurado no que não dominamos, o mundo formalizado nos autos costurados de um processo. Jocenir rompe com o distanciamento e narra as ações do que protagonizou. Testemunhamos o limite numa narrativa que nos prende e emociona. Quem vê Jocenir pela primeira vez, não pode imaginar a densidade de suas vivências. A postura altiva e segura não deixa vestígios de sua estrada feita de caminhos um tanto tortuosos, mas se o fitamos de perto, os olhos deixam transparecer toda sua profundidade. Por trás do autor, resta o homem; por trás das muralhas, as lembranças de um detento... Por instantes, desmontamos de nossas seguras ocupações no mundo. Deixamos a história fluir, afinal como diz o narrador: “tudo já estava escrito”, e compreendemos a precariedade humana e nossa imensa fragilidade diante das incertezas do contexto que estamos inseridos. Poderia ter sido eu... Poderia ter sido qualquer um... Mas estava escrito... O diário nos prende em cumplicidade. Sentimos a dor, a solidão, a enorme lua iluminando a cela e o nosso imenso vazio. Pensamos compreender o mundo, dominar o homem, enquanto nos encarceramos em percepções superficiais. A vida está além das realidades que cremos, a vida está abandonada em nossa alienação. Paro por instantes e lembro da jovem estudante, lendo sobre o julgamento dos humildes trabalhadores rurais Sebastião e Joaquim Naves. Com paixão, descobri o erro judiciário no caso dos irmãos Naves, ocorrido me novembro de 1937 em Araguari. Indignada, tive certeza de que casos assim não poderiam continuar na história jurídica brasileira. Seduzida pelo direito penal, como, aliás, a maioria dos estudantes de direito, perdia-me entre o jus-naturalismo e o positivismo, acreditava que ninguém tinha direito de errar com a vida alheia e me deparei com o fato de que errar é humano e ser humano é ser a precariedade de um direito, a subjetividade de uma motivação. Quem tem o direito? Quem saberá a verdade depois de um processo? Balzac nos ensina que depois de um processo, das atuações de defesa e de acusação, e da atuação dos próprios réus, nunca mais se terá a cristalina verdade dos fatos, nem mesmo nas consciências das partes. Jocenir (Josemir Prado) surpreende por sua força e capacidade de relatar o que todos gostariam de esquecer, por seu olhar inquieto, sempre procurando algo, talvez busque as sombras, talvez as grandes muralhas... O murmurinho dos corretores, vozes ainda jurando inocência, vozes que calaram nas sombras... O Carandiru foi desativado, mas provavelmente existirá sempre na lembrança dos homens que lá passaram e testemunharam a vida dos nove pavilhões e de seus hóspedes. A lei perde-se no estado de não civilização. São homens na caverna, observando as representações. A vida passa fora das muralhas, os homens passam dentro de si. O tempo aprisiona os homens na lentidão das sombras, o homem encarcera o tempo nas marcas que lhe dobram o corpo. Jocenir é libertado numa tarde de novembro. No final da primavera, a natureza o agracia com sol e chuva.(estaria escrito?). Jocenir caminha, tenta sentir o vento, perceber o horizonte, ter certeza de que as muralhas ficaram definitivamente no passado. Chora umedecendo o corpo ressecado de sonhos e caminha em busca de um arco-íris. Havia um arco-íris na liberdade de Jocenir... Havia a possibilidade de reencontro do homem com o homem liberto, do homem com sua família, tanto tempo detida em sua ausência. Depois de conhecê-lo, volto para casa com a necessidade de ler seu livro, Diário de um detento, o que me consome a madrugada. Termino em sua libertação. O mundo implode as muralhas dos meus ideais. Não podemos construir uma sociedade nova, se não tivermos as proporções certas da realidade! Engrandece-me perceber um homem que, ao romper com o sentido de infelicidade e de injustiça, reverte o próprio papel no mundo, deixando a passiva condição de objeto circunstanciado para assumir o papel de sujeito: narrador e protagonista. Talvez até um formador de opiniões... “Nem vale a pena pensar em tal. Desde que as sociedades inventaram a Justiça, nunca descobriram o meio de dar à inocência acusada um poder igual àquele de que dispõe o magistrado contra o crime. A Justiça não é bilateral. A defesa que não tem espiões nem polícia não dispõe em favor dos seus clientes da potência social. A inocência nada mais tem por si do que o raciocínio, e o raciocínio que pode impressionar os juízes é muitas vezes impotente sobre o espírito prevenido dos jurados. O país inteiro está contra vocês.” “A inocência deve conta clara e plausível das suas ações. O dever da defesa é pois opor um romance provável ao romance improvável da acusação. Para o defensor que considera sem culpa a seu cliente, a acusação torna-se uma fábula.” “A sociedade é como o oceano, após um desastre retorna o seu nível e seu ritmo e apaga os vestígios pelo movimento de seus devoradores interesses.” Um caso tenebroso - Honoré de Balzac Caso irmãos Naves – Os irmãos, humildes agricultores, foram acusados de latrocínio contra Benedito Caetano em novembro de 1937. Durante o inquérito, os irmãos, as respectivas esposas e a mãe foram torturados covardemente, a fim de assumirem a culpa. Após um processo, cheio de contradições, foram condenados a 25 anos e seis meses de reclusão, posteriormente reduzidos na primeira revisão criminal para 16 anos. Sebastião e Joaquim, ante comportamento prisional exemplar, obtêm livramento condicional, em agosto de 1946. Joaquim Naves morreu em 1948 na condição de indigente. Em julho de 1952, o “morto” Benedito Caetano é reconhecido por um amigo de Sebastião Naves e encontrado na casa dos pais numa cidade vizinha, após longo exílio em terras longínquas. Ante a constatação do erro judiciário, amplamente divulgado pelos meios de comunicação, houve uma nova revisão criminal, inocentando os irmãos, e o início de um processo de indenização civil pelo que é considerado o maior erro judiciário brasileiro. Em 1960, vinte e dois anos após o início dos suplícios, o Supremo Tribunal Federal conferiu a Sebastião Naves e aos herdeiros de Joaquim Naves o direito à indenização.
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 30/05/2005
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