DIAS PERDIDOS - LÚCIO CARDOSO
“À força de sentir o ambiente pesar como uma secreta condenação, sofria a presença de tudo como um perpétuo esfacelamento. Não havia repouso, cada minuto era implacavelmente absorvido por um abismo de gelo e indiferença”. Lúcio Cardoso Uma sucessão de sombras remonta os plurais personagens na linearidade de vidas cerzidas na impossibilidade no romance Dias Perdidos de Lúcio Cardoso publicado em 1943 e relançado em 2006 pela Editora Civilização Brasileira. Um contagiante sentido de nostalgia permeia os sentimentos e os atos dos protagonistas que insistem em percursos à beira do abismo. Mesmo com a arriscada trajetória, as vidas se perdem na aridez de desertos contínuos com as fronteiras costuradas nas gerações que ampliam a representação do outro no vazio. O casamento de Jacques e Clara é suspenso pelo espírito aventureiro do homem e a resignação entristecida da mulher. O filho Sílvio, antes a realização do desejo de maternidade da mulher, torna-se o principal motivo da separação do casal. Clara, apaixonada pelo homem charmoso e sedutor dos primeiros encontros, não pode culpá-lo por sua solidão e transfere ser rancor ao filho que passa a infância à margem de sua presença. Clara se consola com a certeza de que se não fosse pela existência do filho, Jacques não teria a coragem de abandoná-la. A amiga, Áurea, uma mulher sem atrativos ou objetivos pessoais, assume a educação de Sílvio e as tarefas da casa. Como uma sombra, permanece fiel às ausências de Clara e tenta dar continente aos primeiros passos de Sílvio. A primeira parte do livro abre as cortinas da infância de Sílvio: a descoberta do quintal, a inserção na escola, os primeiros amigos e a imagem idealizada da menina de longos cabelos loiros no carrossel durante uma festa da cidade. Revela-se o amor virginal e puro que alicerçará o sentimento de Sílvio por Diana. Vestígios de infância que reproduzirão a sombra nostálgica a recriar o corpo da fantasia em adultos vencidos por traições, circunstâncias, culpas e falta de reciprocidade amorosa. A segunda parte é densa, assombrada pelos fantasmas reais e fictícios. Jacques volta para casa velho e doente, quase não há vestígios do homem por quem Clara renunciou à vida após a súbita, porém aguardada, partida. Um homem presenteado pela sorte que perdeu tudo em busca da satisfação de inquietudes e desatinos. Sombras e silêncios desenham e reverberam o rancor de tantos anos. Mas há algo que os une e fortalece contra o mundo como uma unidade indissolúvel, como o autor cruamente denuncia: “Esses dois seres, unidos por um laço sobrenatural, possuíram uma noção de mútua propriedade que destruía a lembrança de todas as misérias cometidas, de todas as injúrias e traições, que os transformava num só corpo hostil ao que não lhes pertencesse – até mesmo aos próprios filhos”. Jacques voltou para morrer entre os seus, mas só as lembranças de Clara lhe pertencem e ele nunca as conheceu. Sílvio é um adolescente cheio de dúvidas, com a partida do primeiro amor, Diana, e a morte do amigo Camilo, quando se depara com o desconhecido pai. O rapaz passa os dias com mulheres vulgares e corrompidas e em mesas de jogos. Clara se aproxima do filho, acumpliciada pelos obscuros sentimentos que os dois nutrem por Jacques, mas não se aprofunda no turbilhão existencial do rapaz. O casal mantém uma relação de tolerância e privações. Jacques deseja encontrar razões para o fracasso de sua vida e acusa a todos os que o cercam de uma conspiração. Não pode encontrar em si os motivos para seus infortúnios, não há profundidade para percepção da extensão das suas ações passadas. Seu egoísmo é uma sombra absoluta que se impõe cega e silenciosa sobre as demais e surpreende ao despertar uma culpa latente em todos os personagens. Não há perdão para os dias perdidos, os horizontes acinzentados, as ausências tão cicatrizadas na rotina... As emoções primaveris tentam manter aquecidos os invernos e outonos existenciais, mas os corpos atuais se mantêm eretos com raízes gastas e teimam em sustentam, sobre os galhos secos, as remotas folhagens dos horizontes perdidos. A morte do pai fecha mais um ciclo e Sílvio amadurece com o reencontro de Diana na terceira fase do romance. Apesar de ser evidente a falta de amor da Diana, acostumada aos luxos e às modernidades do Rio de Janeiro, e de o casamento se sustentar na debilidade física da mulher que está desacreditada pelo médico, Sílvio e Diana se casam. A monotonia, o tédio e a falta de paixão consomem a mulher que definha entre as quatro paredes em nostálgicas sombras do que fora a bela menina de cabelos ao vento no carrossel. Sílvio aprisiona-se no trabalho no escritório e finge não perceber a impossibilidade traçada na aridez da relação do casal sem convergências para os sonhos. Clara se guarda no silêncio e desenha no próprio corpo um tumor terminal cheio de ramificações. A metáfora perfeita cresce à sombra das realidades, alimentando-se do tédio e do desespero de vidas perdidas num futuro pretérito, e alardeia de repente o significado da morte nos dias olvidados. A única possibilidade de continuidade é a extração completa do mal enraizado. Clara não sobrevive, mas Sílvio e Diana conseguem seguir os próprios caminhos marcados pelos tantos sentimentos que dissecaram suas juventudes e marcaram as feições graves dos adultos. A despedida consensual dos seres dilacerados pelo tempo perdido e encontrados na culpa recíproca é a possibilidade de mergulharem nas próprias vivências e darem curso aos rios estagnados à margem da vida, tentando resgatar o encantamento e guardá-lo junto ao sal das fontes originais. Sombras nostálgicas... Ao término da leitura do romance Dias Perdidos de Lúcio Cardoso, sentimos uma irresistível vontade de recomeçar desde o primeiro capítulo e remontar os obscuros jogos de sentimentos travados entre os personagens, munidos apenas com a intuição e as percepções delineadas na narrativa poética e penetrante do escritor mineiro.
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 26/07/2006
Alterado em 26/07/2006 |