BONECAS E NOIVAS
Ler um bom livro é como um casamento selado entre a memória e a história desentranhada das palavras. Uma imagem inesquecível que permanece arraigada nos pensamentos como uma vivência a compor as circunstâncias.
Começo a ler “O livreiro de Cabul” pelo título. Penso que o livreiro é quase como um vendedor de sonhos... Com a história e as ideologias resguardadas nas prateleiras, ele é o guardião da sabedoria, capaz de difundir no mundo um novo significado com o olhar poético ou crítico para os caminhos das civilizações... Mas logo no primeiro capítulo, percebo que o protagonista não é exatamente um livre pensador como se autodefine, é um homem preso às tradições e aos costumes que atravessa os regimes que devastaram o Afeganistão em guerras, ódios e intolerâncias, preservando o romance na ficção e conduzindo a sua família com a tirania estereotipada do mundo islâmico. As contradições do livreiro abrem espaço para uma reflexão aprofundada sobre o papel da mulher ou sua ausência na sociedade afegã. Não há como não se abater a angústia da primeira mulher deposta pela idade, o sofrimento da segunda que, aos dezesseis anos, deve se submeter ao casamento com um velho, a escravidão da irmã mais nova, a ausência de horizontes da anciã, o pesar no nascimento das meninas... Enfim, o enclausurado mundo feminino, representado com a sombra silenciosa e desbotada da burca, prolonga-se com a ausência de atrativos num tempo fadado à repetição e ao abandono. A história do Afeganistão e o radicalismo do regime do talibã já foram amplamente divulgados após o fatídico 11 de setembro, mas os dedos decepados ao serem flagrados pintados com esmaltes; os passos femininos rentes ao chão para não serem percebidos pelos homens; a proibição do aprendizado ou do exercício de uma função, e as outras tantas privações e violências a que estão sujeitas às mulheres, narradas pela autora, ainda causam calafrios e se entranham na memória como uma pungente realidade que por tanto tempo ignoramos. Eis que a palavra tira a máscara e nos mostra a literalidade das percepções. O vocábulo afegão para noiva e boneca é o mesmo: ARUS. Na noite da hena, na véspera do casamento, a noiva deve permanecer distante, com o olhar fixo em frente, sem mostrar alegria ou tristeza, é uma boneca a ser apresentada ao mundo onde deverá permanecer artificial, deixando a sociedade conduzir suas emoções e ações. Da mesma forma como a mulher foi sufocada sob as burcas, condenada a ser desembrulhada apenas sob os caprichos do dono, a polícia religiosa do talibã invadia os lares e destruía as bonecas (brinquedos) com requintes de crueldade em frente às crianças por elas representarem pessoas. Acabo a leitura e folheio o livro cheio de marcações. O livreiro Sultan Khan, protagonista, é na verdade um antagonista a ser dissipado na grandeza do olhar dos grandes escritores e poetas para o feminino ou na força das mulheres que se destacam nas diversas áreas em que atuam, como a jornalista °Asne Seierstad, autora do livro. Apresso-me para o casamento, nada tradicional, de uma amiga: segundas núpcias de ambos os noivos, festa sem grandes cerimônias com a união de parentes e amigos numa churrascaria rodízio... Mesmo com toda a informalidade, certamente, encontrarei a noiva embonecada, sob um véu de transparências e brilhos, com o sorriso aberto de horizontes e com a expressão definitiva de ser dona do seu destino. Noiva e boneca em português são vocábulos bem distintos, no máximo se arriscariam numa união transitória, talvez como um substantivo composto.
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 28/06/2006
Alterado em 28/06/2006 |