Colcha de Retalhos

"O homem é um deus quando sonha e não passa de um mendigo quando pensa." Holderlin

Textos


MEMÓRIA DO ESQUECIMENTO


Venho de uma família que queimava fotografias. Minha avó dizia que a fumaça de imagens embebia a alma com lembranças e deixava impregnado o cheiro vivo dos ancestrais.

Mas não foi sempre assim. Creio que esta tradição foi criada para aquecer o frio das ausências de uma geração entre mares e explicar os conflitos que só o distanciamento do tempo tornaria possível.

O bisavô Rocco gostava de retratar a vida cotidiana para expedir às pedras de sua origem italiana. Era uma forma de crescer e de assumir forma corpórea no pequeno lugarejo esculpido entre duas grandes e legendárias pedras – Saxum e Pietra di Castalda – na característica paisagem lunar da Lucania. Desejava ser recordado como a natureza dos minerais duros e sólidos que permanecem.

Despediu-se de Sasso di Castalda nos passos lentos da procissão de San Rocco e desembarcou no porto do Rio de Janeiro ainda com os ecos dos fogos de artifício da festa do padroeiro. Tinha apenas treze anos.

Mezzogiorno. Uma história a ser redescoberta entre as fumaças e as fantasias quando os ponteiros sobrepostos apontam para o hemisfério norte, o território das recordações, e insistem em explorar as pedras do tempo.

A geração da minha avó interrompeu as tantas travessias e parou o tempo com a metáfora de uma lareira que manteria o fogo: “C’è ancora il fuoco”. Encontro um retrato antigo em preto-e-branco de um senhor com olhar determinado. A prova da violação da saudade. Conheço o bisavô. Encontro, na imagem, a testa e os olhos do meu pai, os lábios do meu tio, os horizontes longínquos do meu pensamento...

Passo dias com fragmentos de meios-tons manifestos. Quase reais. Não fui impregnada pela fumaça de imagens e sinto vontade de resgatar as cinzas na fornalha familiar para compreender a história numa trilha de palavras. Emigrar da pátria do esquecimento.

A narrativa de pedras e raízes encerrará nas reticências do futuro, em novas fumaças, em reiteradas fantasias, mas... Mezzogiorno. Ponteiros sobrepostos de uma bússola teimosa. Escondo o retrato antigo entre os coloridos presentes e parto em busca do cais intermitente da história.
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 23/09/2009
Alterado em 13/02/2010


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