Colcha de Retalhos

"O homem é um deus quando sonha e não passa de um mendigo quando pensa." Holderlin

Textos

METÁFORAS CORPORAIS
Durante o almoço ela começou a sentir o braço doendo, trabalhou a tarde inteira com a sensação de que carregava um peso incomensurável e dissipou suas inquietações com um banho quente e com a certeza de que a dor desapareceria com o descanso. Um bom livro e o tempo suspenso numa tipóia fictícia.

A dor aumenta e torna qualquer movimento no braço extremamente penoso. Já não pode suportar sequer o peso do livro. Alarmada para as tantas possibilidades – dor no braço é um mau sinal – coloca a primeira roupa que encontra e vai para um pronto-socorro de ortopedia. Logo na recepção, com a exposição dos seus sintomas, é encaminhada para um hospital do coração próximo.

Dor no braço... Sem demora é submetida a um eletrocardiograma e passa por uma entrevista preliminar com o enfermeiro: Fumante? Histórico familiar? Já sofreu do coração antes?

As tantas perguntas a deixam mais nervosa. O peso no braço parece aumentar. Explica que está muito tensa, com excesso de trabalho, com o sono inconstante... Anda deprimida, sem vontade de falar ou de ouvir, deseja dormir para esquecer o cansaço, mas teme os sonhos traiçoeiros que muitas vezes prorrogam o dia com a continuidade das preocupações extravagantemente rotineiras. Ainda assim tenta brincar: já sentiu perigosas palpitações, viveu arritmias desconhecidas, sofreu do coração metaforicamente... Mas o profissional filtra as informações e a diagnostica como uma viciada em trabalho.

Ela tenta explicar que sempre considerou o trabalho como um alicerce, que a construção principal de suas realizações era outra, mas que agora, por uma situação imprevisível, as obrigações estavam desabando nos seus dias com um poder paralisante.

O médico começa a escrever no verso do exame. Suspense. Depois de ler alguns caracteres indefinidos, ela é informada que não é coração. Alívio, dos males o menor... Mas o seu braço continua dolorido e com os movimentos limitados... De volta à clínica de ortopedia, após o exame clínico e a radiografia, é diagnosticada a tendinite no bíceps. Carregamento de peso ou movimento brusco. Ela tenta expor sua tensão, o aumento de trabalho nos últimos meses, as noites entrecortadas ou as sonolências patológicas. Não se lembra de movimento brusco ou de qualquer peso, mas o médico, com o laudo do eletrocardiograma, ratifica a conclusão do cardiologista: tem de encontrar novos objetivos, a vida não é só trabalho...

Desiste de explicar e se rende, abatida, ao olhar clínico do outro.

Meia-noite. O Antiinflamatório e o relaxante muscular demoram a fazer efeito. A dor no braço frustra o cansaço e os sonhos se atropelam numa sucessão de realidades distantes do sono. Não se deixam desarticular das engrenagens conscientes, não expressam os devaneios ou as fantasias...

Peso? Movimento brusco? Ela revira a memória em busca dos motivos. Não lembra sequer de ter feito compras no supermercado recentemente ou levantado os braços num encontro inesperado. Passa os dias analisando processos e digitando...

O peso é simbólico e silencioso. Uma sobrecarga que se expressa no corpo num grito de dor e em reverberações aflitas. Uma metáfora absoluta dos excessos que aceita sem perceber a extensão que corrompe a alma com a sensação pretérita de acordar para os dias já decodificados nos repetitivos processos.
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 22/06/2006
Alterado em 22/06/2006


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