CALEIDOSCÓPIO
Ventos anunciam as densas nuvens. Em instantes, o céu se transforma num imenso escudo cinza. Sinto-me levar nos ares, flutuo sobre as construções e jardins. Tento, em vão, costurar os fragmentos de pensamento que refletem dispersos no céu carregado.
Passo entre a menina de longos cachos com o olhar arregalado e a mãe de rosto bordado. A menina sorri o segredo que constrói suas fantasias no cenário do seu primeiro olhar para o mundo: tudo é colorido e grandioso, mas seu sol não tem conteúdo e não é necessária a existência de chão para algumas construções... A jovem mãe está presente no olhar carinhoso que tenta compreender a infância desentranhada e traça a linha suave de um solo carinhoso. Suaves pinturas pastéis... Um sorriso enigmático prende a atenção. Livre posso perceber meu riso e interiorizar a satisfação. O desabrochar de uma acanhada pétala, o desaguar de uma lágrima cerrada. Os olhos molhados consomem o contentamento e se perdem numa nuvem cinza que deságua em novas tempestades passionais, alimentam o desabrochar de tantas sensações ambíguas, ancoram no horizonte das marés de calmarias e se prendem nos fardos das formigas cotidianas... Tento me agarrar às gotas de chuvas ardentes. Consumir-me no fogo dos calorosos sentimentos... Mas ventos são traiçoeiro. Lançam-me aos mais altos picos para que possa observar a solidão de uma criança num ato de heroísmo, compartilhar a solidão de um covarde sentenciado. Todos estão fadados ao isolamento. Reflexos da sobrevivência... Ao longe, percebo o som de um programa de televisão. Tento fundear a atenção, agarrar-me em terra firme, mas novas ondas de dispersão me arremessam aos ares. As notícias se repetem em novos personagens... Labaredas pincelam os desenhos do fogo nas cálidas estruturas. Explodem sensações. Sinto fortes mãos procurando me alcançar, proteger... O olhar terno, a boca desenhada na expectativa do encontro... Sinto a presença em mim, o corpo confunde-me em algumas faíscas... Compreendo ainda a fragilidade do menino e tento em vão acalentá-lo em meu colo abrasado... Acariciar sua fronte assustada, mas sou a combustão das próprias intenções. Tantos ventres soltos ventam aparições... Rasgam-me os céus. Abruptamente, sou lançada num breu onde as vozes reverberam algumas vivências em bruxuleios de culpas e ressentimentos. O fogo! O horror das inquisições... Por que tantos questionamentos? Por que tantos porquês e desculpas? O medo escreve no corpo o vento que estronda em cada movimento. Cinzas passeiam na escuridão. Fragmentos distantes de um pensamento completo, de uma lucidez... Sinto vertigem nos picos em que ainda me observo. Caio no abismo das grandes fendas, afundo num oceano gelado. Sou onda, sou profundidade... Percebo-me viva na dor que denuncia todo o corpo. Sobrevivi. Olho as paredes pálidas, o teto tão branco e próximo. Aos poucos, reconheço meu quarto. Recolho os cacos de pensamento e tento juntar o caleidoscópio em que estava presa sob os tantos cobertores. O suor declara que a febre foi vencida. Levanto-me com o enorme desconforto de ter de desenhar um chão para meus pés, de ver o conteúdo do meu corpo suado e exaurido não corresponder a imagem dos meus fragmentados pensamentos... Ventos são arautos de novas nuvens. Deito-me. Busco tantas posições, encolho-me... Em vão, escolho os vidros coloridos paras as novas sucessões de impressões: o ventre aquecido que me gerou, o colo compreensivo de minha jovem mãe, suas palavras tão doces, a constância de seu amor incondicional... Desejo um solo tranqüilo e seguro. Mas... Distante, sou lançada num turbilhão de emoções e novamente me fragmento no vento do febril caleidoscópio.
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 14/05/2005
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