Colcha de Retalhos

"O homem é um deus quando sonha e não passa de um mendigo quando pensa." Holderlin

Textos

Espelho - Moldura das faces de um medalhão

“- Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro... A alma exterior pode ser um espírito, um fluído, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação.”
Machado de Assis

Vestiu o terno azul marinho com a gravata bordô e colocou o sapato bem encerado. No espelho, brilhou com a fixação do cintilante alfinete de lapela. Estava pronto. Sentia orgulho de si. Enumerava os feitos de como conquistara a roupagem de suas atribuições numa carreira meteórica. Com as vestes, vinham as palavras difíceis, a voz impostada, os gestos calculados, o cargo...

O chefe da seção era reservado. Homem de poucos e difíceis vocábulos, não falava de sua vida pessoal e tentava não se estender nos assuntos profissionais. Guardava-se seguro sobre as elegantes e imponentes vestes. Não se despia nunca, sua vida pessoal era, para muitos, um obscuro objeto de desejo, para outros motivo de intriga e difamação. Claro que havia versões...

Em todas as ocasiões o chefe era refém das representações e agia de acordo com a frágil circunstância. Depois de um coquetel, onde aceitou uma taça de vinho, muitos disseram que pelos modos só poderia ser um dedicado enólogo, os mais criativos espalharam que num só gole ele decifrou o fabricante, a safra e a uva... Outros, mais maliciosos, não deram importância aos gestos e espalharam que o chefe gostava de uma “birita” e que inclusive já freqüentara uma clínica de reabilitação.

O homem era uma metáfora a ser decifrada nos murmurinhos do corredor e se ufanava do mito criado. Em silêncio, observava e inquiria os seus subordinados com olhares tão penetrantes que não havia como contrapor os argumentos apresentados (ou omitidos). Com poucas palavras, deixava o olhar distante e a sensação de perplexidade nos que silenciavam sem entender as enigmáticas palavras, muitas vezes proferidas em latim ou em qualquer outra letra morta.

O chefe era um talento nato. Mandava e desmandava e estava sempre distanciado para interpretar seus atos e omissões. Tinha conhecimento absoluto de como manter a cena com técnica. Esquecia a emoção, nada de emprestar suas vivências à construção do personagem. Muitas vezes foi influenciado por algum perfil a ele atribuído, principalmente quando o engrandecia, contudo, conseguia separar o homem da obra. Sua vida permanecia ilustrada no imaginário alheio.

Vivia cheio de atribuições e encontros internacionais. Fazia um bom marketing de si com a divulgação de sua presença nos eventos. Muitas vezes reunia o pessoal da repartição para um bolinho no final do expediente, mas tinha sempre um bom motivo para sair logo.

O chefe era um verdadeiro artista. Quando chegava em casa, permanecia com suas vestes até encerrar os afazeres diários. Lera em algum lugar que Maquiavel, para escrever “O Príncipe”, vestia-se todas as noites com roupas nobres e cumpria um cuidadoso ritual. O chefe não era um escritor, mas achou que o cumprimento de tais ritos só poderia engrandecer sua existência.

Vencido pelo cansaço, extraía com cuidado o alfinete e evitava o espelho ao se despir. A ausência do terno lhe trazia uma estranha sensação de fragilidade. O dirigente se limitava à alma exterior. Como uma marionete nua guardada no armário, o corpo permanecia sozinho em seu quarto, aguardando o próximo expediente. O chefe era um personagem inspirado nos contos “O Espelho” e “Teoria do Medalhão” de Machado de Assis, mas não sabia.
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 18/04/2006


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