Colcha de Retalhos

"O homem é um deus quando sonha e não passa de um mendigo quando pensa." Holderlin

Textos

QUASE QUIXOTE
Eis que observo no horizonte duas silhuetas se distanciarem. Um corpo alongado, armado com longa lança, penetra a aquarela das primeiras cores do amanhecer, engrandece o presente com a perspectiva de um vôo, exalta o futuro com os estreantes brilhos... Ao lado, um curvilíneo corpo aprisiona a noite, projeta a realidade na estreita sombra, encarcera-se nos passos possíveis...
Acordo com a sensação lírica de um poema. Criadora e criatura se fundem numa gestação fértil. O mundo me contagia com emoções diversas. O que sou? Parte de mim se perde nas madrugadas de memórias e outra se encontra no breve amanhecer.
Personagens saem das folhas literárias e incorporam as atitudes. Com o tempo posso me decifrar em ficções e decifrar o mundo em minhas vivências.
Dom Quixote e Sancho Pança... O semblante comprido penetra o campo de fantasias, sonha e se dedica à luta contra os moinhos de vento... A silhueta encorpada preenche a sombra da sustentável existência e acompanha os sonhos com os olhos atentos de práticas...
O ideal e a realidade se encontram na relação de empatia que une os personagens. Contagio-me com as atitudes ousadas, bordadas nas linhas do temperamento de cada um. Desejo de ser Quixote, desejo de ser Sancho... Desejo de ser quase completamente ambos...
Acordo de segunda-feira. Os personagens se escondem nos sonhos... Levanto-me com a missão de realizar a aventura do cotidiano. A rotina assume o espaço dos moinhos de vento. Incorporo o presente nas sombras das memórias e nas luzes do futuro. Sancho Pança e Dom Quixote descansam suas inquietudes, enquanto tento me situar no mundo. Os olhos apaziguados buscam os alicerces à margem da ficção... Alongo-me na perspectiva de mais uma conquista.
Recrio-me. Acompanho os passos da mulher dos tristes olhos, observo o jovem que badala os passos, sinto falta do dono do olhar, sorrio com a criança que me surpreende com a espontaneidade de uma folha em branco, liberto a indignação ao me deparar com a fila do INSS, costuro os retalhos da mulher grávida... Meus personagens fogem do papel, ganham espaço no mundo e passam a compartilhar minhas percepções.
Passo pelas escadarias da universidade. Estudantes carregam suas escolhas estampadas nas bolsas; profissionais cruzam as travessias das sustentações; anônimos buscam alguma identificação... Tropeço na realidade... Percebo a existência distante dos ideais românticos e das perspectivas fatalistas.
Sonhos e realizações... Para ser completamente é preciso quase ser Quixote, quase ser Sancho... Ser por inteiro herói do cotidiano.
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 01/05/2005
Alterado em 13/05/2005


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