NOTAÇÃO
Gostaria de, por instantes, abandonar as palavras e escrever a partitura de uma obra musical absoluta que abrangesse todas as tonalidades e deixasse nas entrelinhas a expectativa por uma nova. Símbolos universais que expressam a intensidade de todas as imagens, de todos os textos... Sons que decifram o significado do sagrado e compreendem a vida numa eterna louvação panteísta. Perco a percepção do mundo e caminho junto à leitura silenciosa, apenas do ouvido interior, que ressalta o solo de oboé num concerto resgatado no cotidiano de tímpanos e trompetes. A audição concentrada, com todos os olhares, para a magia de cada acorde em suspenso no cruzamento tumultuado. O gozo do alimento no corpo delineado nas cortinas abertas pelo encantamento de uma ópera universal no reflexo de uma vitrine de sonhos. O mundo ganha novas dimensões. Recordações de sopros e cordas entrelaçadas com vozes sobrenaturais. Risos, choros, perplexidades... Todo o sentimento entregue a harmonia. Renderia minha mortalidade a uma fuga arrebatada de Bach; viajaria nas estações de Vivaldi; deixaria a percepção deslizar nos movimentos de uma sonata clássica de Mozart; libertaria o grito impróprio no caos silencioso de Beethoven; libertaria a paixão na subjetividade romântica de uma canção de Schubert; conheceria a pluralidade de ser nas composições de Schumann, e sonharia com os horizontes de uma sinfonia de Mahler. Poderia reviver a verdade sobre a existência dos céus e infernos se fosse abençoada pela música dos homens devotos, propagar os ideais iluministas se acreditasse nas revoluções ou entregar minhas paixões ao mundo nas inquietações das pausas e fermatas dos que deixaram composições para a posteridade. Embriagada pelas músicas, retornaria as palavras... Tentaria desprender os sons suspensos nos arrepios do corpo e as emoções cicatrizadas na alma para derramá-los numa poesia com andamento surpreendente.
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 13/03/2006
Alterado em 14/03/2006 |