Colcha de Retalhos

"O homem é um deus quando sonha e não passa de um mendigo quando pensa." Holderlin

Textos

O VESTIDO AZUL - Doris Dörrie
“Alfred disse a Florin que, em japonês, a palavra para pele e roupa são idênticas. Foi um costureiro japonês famoso que falou durante uma entrevista. Ele, que sobreviveu a Hiroshima quando era uma criança pequena, esfregou durante semanas ovos crus sobre a pele da mãe, e assim conseguiu salvar sua vida.”
Doris Dörrie


“Este vestido vai mudar a sua vida”. A frase síntese do romance da alemã Doris Dörrie desvenda os tantos sentimentos de uma jovem viúva e de um estilista homossexual. As confissões se aprofundam e alcançam as obscuridades, ambigüidades e contradições dos protagonistas com a revelação das faces dos companheiros mortos mitificadas nas memórias. Inquietações que reverberam em cada leitor sublinhando seus amores e lutos.

Florian vive a morte do companheiro Alfred. Durante três anos, lutou solidário contra o câncer incurável do outro, sofrendo a impotência de não compor no próprio corpo o aniquilamento. Tratamentos quimioterápicos, crendices, peregrinações... Apesar dos esforços e do grande amor que os une, a morte é um corte afiado. Florian veste os manequins da vitrine de preto, fecha a loja por tempo indeterminado e entrega-se ao vazio deixado pelo silêncio do outro.

Alfred também era estilista e sua última criação foi um vestido azul idealizado com força transformadora. Não era simplesmente uma veste, mas uma nova pele. O último modelo tem o corte simples, mas o objetivo é complexo e se desvela na narrativa abarcante de Doris Dörrie. É a possibilidade de ser o azul de um céu, de uma sombra, de um sonho... É o desejo do homem combalido por um câncer de amanhecer sempre... É o traço do desejo de viver... É a memória com nova perspectiva...

Babette é as cinzas do marido. Após sete anos de casamento, Fritz é atropelado em Bali durante uma viagem de férias do casal. Babette não consegue viver com a vulnerabilidade de sobreviver ao outro e de se perceber inteira. As recordações são aniquiladas por culpas engrandecidas, a vida parece sem sentido, a memória fica presa ao luto e se aniquila com a culpa. Babette passa as horas livres caminhando no cemitério e tentando se incorporar aos mausoléus erguidos, ler sua dor nas lápides, respirar as flores adormecidas.

No cemitério, Babette é observada por Thomas, um médico anestesista que corre todos os dias para cansar suas inquietações. Aos poucos os dois se aproximam e surge a possibilidade de uma entrega atrelada a negação do amor. Desperta pelo morno interesse do outro, Babette entra numa loja fascinada pelo azul do vestido na vitrine. Cinza, transforma-se numa mulher atraente ao vesti-lo. A última venda de Alfred, a expectativa de Babette, a morte do estilista...

Meses após a compra, Florian procura Babette para recuperar o último vestido criado pelo companheiro. A aproximação dos dois abre um universo amplo de vivências e converge para a dor, o luto e o amor.

A relação de Babette e Florian se aprofunda. A vida dos dois converge para os vazios deixados por Fritz e Alfred, para a compreensão da incompletude dos encontros atuais.

Labirintos... A narrativa nos prende na necessidade de explorar as próprias sinuosidades enquanto percorremos, cúmplices, os trajetos tortuosos dos personagens. A autora encerra o romance com o reencontro de Florian e Babette com as próprias mortalhas na Festa do Dia dos Mortos no México. A forte simbologia reacende a percepção de que estão vivos e libertos para as relações afetivas.

A leitura abre novas janelas... Procuro a obra da cineasta e escritora na internet... Uma nova surpresa! Doris Dörrie é autora do livro infantil - Carlota quer ser princesa. Um livro que me encantou em janeiro de 1999 quando o li para Barbarella, então com três anos, no corredor da livraria Siciliano em Curitiba. Absolvida com a leitura, esqueci o nome da autora e do livro e não consegui encontrá-lo novamente nas prateleiras coloridas infanto-juvenis. Mas a história ficou marcada na memória. Carlota quer ser princesa é um desabafo de uma mãe contemporânea cheia de obrigações que muitas vezes esquece os sonho e precisa ser despertada pela pequena filha para as cores das fantasias que constroem a realidade em algo atraente. Para ser princesa, Carlota precisava ser filha de rainha... Uma linda história para o adulto resgatar o olhar infantil e crescer.

Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 10/02/2006
Alterado em 10/02/2006


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